De Noé a Abraão e a Moisés: Evidências de lacunas genealógicas na literatura mosaica, parte 4 de 5


Foto de Diana Polekhina em Unsplash.com
Foto de Diana Polekhina em Unsplash


Leia a Parte3


Obs.: Onde não indicado, os nomes próprios e citações do texto bíblico são da ARC.

por Hugh Henry e Daniel Dyke
2 de agosto de 2012

À medida que continuamos a examinar as genealogias na literatura mosaica, vemos que a história de Abraão apoia a ideia de que as relações familiares descritas no Antigo Testamento nem sempre são tão claras quanto parecem, apoiando assim a ideia de lacunas genealógicas.

Ao longo da história da igreja, as genealogias bíblicas foram usadas para tentar calcular uma data para a criação. Esta data é então citada como suporte para uma Terra jovem. No entanto, como demonstramos nesta série de artigos, um exame mais detalhado do hebraico antigo revela evidências de lacunas nessas genealogias, tornando-as inadequadas para tais cálculos.

Na parte 1 desta série, discutimos a importância fundamental da palavra hebraica yālad – comumente traduzida como “gerou” (na maioria das traduções para o português), “foi pai de” (trechos da NTLH, PBT09 e BPTEX) ou “teve [fulano ou ‘filhos e filhas’]” (NBV, NVT e VFL) – no cálculo de datas bíblicas como a criação e o dilúvio de Noé. Na parte 2, examinamos a história de Moisés, que fornece evidências de que yālad não implica necessariamente um relacionamento pai-filho, mas também pode se referir a uma conexão familiar mais geral.

A parte 3 discute o problema hermenêutico crítico resultante da suposição de que yālad sempre e literalmente significa “gerou” (na maioria das traduções para o português), “foi pai de” (trechos da NTLH, PBT09 e BPTEX) ou “teve [fulano ou ‘filhos e filhas’]” (NBV, NVT e VFL). Se os estudiosos da linha do tempo bíblica se apegam a essa interpretação ao considerar Gênesis 5:32 e 11:26, então eles são forçados a concluir que os filhos de Noé, Sem, Cam e Jafé, (e os descendentes de Tera, Abraão, Naor e Harã) eram trigêmeos – coisa  que os estudiosos geralmente negam.

A Família de Abraão

Agora aplicamos as lições aprendidas com a história de Sem, Cam e Jafé para investigar mais a fundo a história de Abraão. Gênesis 11:26 nos diz: “E viveu Tera setenta anos e gerou [yālad] a Abrão [Abraão], a Naor e a Harã.”

Nossa análise das narrativas sobre os filhos de Moisés e Noé justifica duas observações importantes:

  1. Só porque Abraão está listado primeiro não significa que ele é o mais velho.
  2. O uso de yālad em Gênesis 11:26 não exige que Abraão tenha nascido quando Tera tinha 70 anos e nem mesmo exige que Abraão fosse filho de Tera. Abraão poderia ter nascido depois e poderia até ser neto de Tera.

Como apontamos em artigos anteriores, o contexto e a narrativa são fundamentais para interpretar o uso das palavras – e isso é especialmente verdadeiro no hebraico bíblico. Pistas para o significado de yālad conforme usado em Gênesis 11:26 podem ser obtidas da narrativa bíblica a seguir. Considere Gênesis 11:27b-32:

Tera gerou [yālad] a Abrão, a Naor e a Harã; e Harã gerou [yālad] a Ló. E morreu Harã, estando seu pai Tera ainda vivo, na terra do seu nascimento, em Ur dos caldeus. E tomaram Abrão e Naor mulheres para si; o nome da mulher de Abrão era Sarai, e o nome da mulher de Naor era Milca, filha de Harã, pai de Milca e pai de Iscá. E Sarai foi estéril e não tinha filhos. E tomou Tera a Abrão, seu filho, e a Ló, filho de Harã, filho de seu filho, e a Sarai, sua nora, mulher de seu filho Abrão, e saiu com eles de Ur dos caldeus, para ir à terra de Canaã; e vieram até Harã e habitaram ali. E foram os dias de Tera duzentos e cinco anos; e morreu Tera em Harã.

Uma vez que o “filho” de Tera, Naor, se casou com sua sobrinha Milca, Naor deve ser muito mais velho que Milca ou muito mais jovem que seu “irmão” Harã. A Bíblia não diz que Naor viajou para a cidade de Harã com Tera, Abraão e Ló. Entretanto, parece que ele deixou Ur na época ou mais tarde para ir à “Mesopotâmia” e se estabeleceu na “cidade de Naor” (Gênesis 24:10) porque Abraão enviou seu servo para lá para tomar um de sua “parentela” (Gênesis 24:4), Rebeca, como esposa de Isaque. A cidade de Naor provavelmente fica perto da cidade de Harã, porque Rebeca mais tarde enviou Jacó a Harã para seu irmão Labão (Gênesis 27:43).

Deixando Harã para ir à Canaã

Gênesis 12:4 registra que Abraão obedeceu ao chamado de Deus e deixou Harã para Canaã aos 75 anos: “Assim, partiu Abrão, como o Senhor lhe tinha dito, e foi Ló com ele; e era Abrão da idade de setenta e cinco anos, quando saiu de Harã.”

Muitos estudiosos (incluindo o bispo James Ussher [1]) sugerem que Abraão partiu para Canaã depois que Tera morreu em Harã. Normalmente, eles baseiam essa sugestão no discurso de Estêvão no Sinédrio, nos escritos de Filo, [2] e/ou na suposição de que Gênesis 12 segue Gênesis 11 cronologicamente. Isso é lógico: após a morte de Tera, sua propriedade seria dividida entre Abraão, Ló e Naor, dando a Abraão a riqueza necessária para se mudar, provavelmente atrasando a partida apenas o suficiente para que a propriedade fosse liquidada.

Sob essa suposição, Abraão não tinha mais que 75 anos quando Tera morreu aos 205 anos. Então Tera tinha 130 anos ou mais – não 70 – quando Abraão nasceu. Além disso, a esposa de Abraão, Sara, era 10 anos mais jovem que ele. Se ela era sua meia-irmã, como o Gênesis parece indicar, então Tera gerou filhos pelo menos até os 140 anos. Pelos padrões modernos, isso parece irracional; considere ainda o relato da segunda esposa (ou concubina) de Abraão, Quetura. A Bíblia registra que Abraão gerou seis filhos com Quetura. Se a história de Abraão no Gênesis é cronológica, isso aconteceu após a morte de Sara, quando Abraão tinha 137 anos.

Assim, Abraão e Naor podem ter sido muito mais jovens que seu irmão Harã. O bispo Ussher afirma que Harã é o filho nascido quando Tera tinha 70 anos. [3] Isso poderia explicar o casamento de Naor com sua sobrinha e também sugere que Abraão e Ló poderiam ter sido irmãos de mesma idade.

Este ponto de vista é apoiado pela afirmação de Josefo [4] e do Bispo Ussher [5] de que Sara é filha de Harã, ou seja, sobrinha de Abraão. Traduções em português traduzem Gênesis 20:12 por Abraão dizendo o seguinte sobre Sara: “Além disso, ela é realmente minha irmã [āḥôt], filha [bat] de meu pai [׳āb], mas não de minha mãe [׳ēm]” (A21). Contudo, o significado das palavras hebraicas ׳āḥôt, bat׳āb e ׳ēm é suficientemente flexível para que Abraão pudesse estar dizendo que Sara é sua sobrinha, neta de seu pai. Por exemplo, Gênesis 46:15 usa a palavra bat para incluir netas, bem como filhas, e ׳āḥôt é tão impreciso, que Rebeca é referida como ׳āḥôt em Gênesis 24:60 em uma bênção de toda a sua família, incluindo sua mãe. Tal flexibilidade nos termos familiares do hebraico bíblico aumenta a probabilidade de que existam lacunas não reconhecidas no registro genealógico bíblico.

Outras interpretações da partida de Abraão

Alternativamente, se yālad em Gênesis 11:26 significa literalmente “gerou” ou “foi pai de”, Abraão nasceu de fato quando Tera tinha 70 anos – como sugerido por Josefo 6 – e ele é trigêmeo ou pelo menos o filho mais velho. Isso justifica a afirmação de Josefo de que Abraão adotou Ló, [7] mas apresenta um problema biológico com sua afirmação de que Sara é sobrinha de Abraão. Como poderia um irmão mais novo (Harã) gerar uma filha (Sara) que é apenas 10 anos mais nova que seu irmão mais velho (ou mesmo gêmeo/trigêmeo) (Abraão)? Mesmo com uma esposa mais velha, Harã teria dificuldade em copular aos 9 anos.

A alegação de Josefo também apresenta um grande problema cultural porque Tera teria morrido quando Abraão tinha 135 anos e Isaque 35, apenas cinco anos antes de se casar com Rebeca. Esperava-se que Abraão comparecesse ao funeral de seu pai, mas a narrativa do casamento Isaque-Rebeca (Gênesis 24) faz parecer que Abraão não tinha visitado Harã recentemente.

O problema é resolvido assumindo que Tera morreu aos 145 anos. O estudioso do Antigo Testamento, Bruce Waltke, é um proponente desse ponto de vista, baseado no “Pentateuco Samaritano [PS], que preserva um tipo de texto original e informa Atos 7:2-4” e na crença de que é improvável que Tera tenha gerado Abraão aos 130 anos. [8] O estudioso do Novo Testamento F. F. Bruce concorda. Ele acredita que o nascimento de Abraão quando Tera tinha 130 anos é “improvável” e sugere a possibilidade de “uma versão grega de Gênesis 11:32 concordando com o texto samaritano sobre a idade de morte de Tera, mas não mais existente”. [9] Bruce baseia esta sugestão na primeira edição do livro do estudioso massorético alemão Paul Kahle, The Cairo Geniza (A Genizá do Cairo), especificamente na análise de Kahle das citações de Filo com respeito à LXX. [10] Todavia, essa análise não consta da segunda edição do livro, [11] publicada doze anos depois. No entanto, se Tera morreu aos 145 anos, então Abraão poderia ter nascido quando Tera tinha 70 anos e deixou Harã aos 75 anos, após a morte de Tera.

Por outro lado, a LXX confunde o problema. De acordo com a LXX, Gênesis 11:32 diz que Tera passou 205 anos em Harã, [12] e, portanto, teria vivido pelo menos 275 desde que Abraão nasceu em Ur (Gênesis 11:31).

Em resumo, uma comparação entre o texto hebraico, a LXX e o PS sugere que Tera morreu aos 145, 205 ou 275 anos, respectivamente, ou algo intermediário (uma faixa de 130 anos, equivalente a 90 por cento da idade mínima de morte de Tera). Questionamos a precisão da LXX e PS porque a LXX consistentemente aumenta a idade até o nascimento do filho [13] dos primeiros patriarcas, enquanto o PS não apenas muda as idades do texto hebraico, mas também faz outras mudanças vantajosas para os samaritanos (como ordenando que um altar fosse construído no Monte Gerizim para fazer sacrifícios).

Respeitamos a erudição de Waltke, Bruce e Kahle, mas é de se perguntar se eles estão se esforçando demais para remover o que consideram uma inconsistência bíblica. Entretanto, nossa posição não é julgar qual é o correto, mas sugerir que essa discrepância pode mostrar que os escritores do Antigo Testamento não estavam interessados em linhas de tempo. Como pessoas de uma cultura do antigo Oriente Próximo, eles não pensavam ou escreviam com a precisão característica das culturas posteriores e não se expressavam de uma forma que antecipasse os esforços dos estudiosos ocidentais, séculos depois, para calcular as linhas de tempo.

O que isso revela sobre Yālad

Em resumo, a narrativa de Abraão fornece um forte argumento de que yālad em Gênesis 11:26 não implica que Abraão era um trigêmeo ou mesmo que ele nasceu quando Tera tinha 70 anos. Embora essa interpretação seja linguisticamente válida, o significado de yālad é muito mais geral. É mais provável que Estêvão estivesse certo ao afirmar que Abraão partiu para Canaã após a morte de seu pai, o que colocaria seu nascimento durante ou após o 130º ano de Tera.

Além disso, uma vez que a análise da genealogia de Moisés mostra que yālad não implica necessariamente uma relação pai-filho e muitas vezes significa “era o ancestral de”, é linguisticamente possível que Abraão fosse neto de Tera. Isso resolveria a preocupação de Waltke e Bruce de que Tera não poderia gerar um filho aos 130 anos!

Na quinta e última parte desta série, aplicaremos o que discutimos sobre yālad a Gênesis 5, 10 e 11. Iremos ainda mais longe para sugerir que yālad tem um significado cultural-sociológico que transcende a reprodução biológica.

Notas de Fim
  1. James Ussher, The Annals of the World (Green Forest, AR: Master Books, 2003), 22.
  2. Philo, “On the Migration of Abraham”, em The Works of Philo, trans. CD Yonge, XXXII, 177 (Peabody, MA: Hendrickson, 1992), 270.
  3. Ussher, Anais . 22.
  4. Josephus, “The Antiquities of the Jews”, em The Works of Josephus, trad. William Whiston, 6, 5 (Peabody, MA: Hendrickson, 1987), 37.
  5. Ussher, Annals, 22.
  6. Josefo, “Antiguidades”, 37.
  7. Ibid., 38.
  8. Bruce K. Waltke, Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 2001), 201.
  9. F. F. Bruce, Commentary on the Book of Acts (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), 146–47.
  10. Paul E. Kahle, The Cairo Geniza (Londres: Oxford University Press, 1947), 141–49.
  11. Paul E. Kahle, The Cairo Geniza, 2ª ed. (Londres: Oxford University Press, 1959), 247-49.
  12. A LXX muda Gênesis 11:32 para ler: “E todos os dias de Terah na terra de Haran foram duzentos e cinco anos; e Terah morreu em Haran. Esta tradução sugere que Terah viveu mais de 70 anos do que está registrado no texto hebraico e depois morreu com pelo menos 275 anos de idade. Gênesis especifica que Abraão morreu aos 175 anos. Com base na LXX, Abraão — se nascido quando Terah tinha 70 anos — teria morrido 30 anos antes da morte de Terah.
  13. Em Gênesis 11, a LXX adiciona uma geração extra não registrada no texto hebraico e aumenta os anos até o nascimento do “filho” da maioria dos patriarcas em 100 anos ou mais. Tem sido sugerido que os estudiosos da LXX modificaram essas datas para corresponder ao sistema cronológico grego predominante na época da tradução da LXX. Outra razão para questionar as datas da LXX é que, embora Matusalém tenha morrido no dilúvio de Noé, de acordo com o texto hebraico, a LXX sugere que ele viveu 14 anos após o dilúvio.

________________________



Etiquetas:
cálculo da idade do universo, da Terra, com base na Bíblia - teologia cristã - A quanto tempo se deu a Criação de Deus?


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Debate sobre a Idade Histórica: Dependência de Traduções (1 de 5)

Debate sobre a Idade Histórica: Início dos Tempos

Gênesis combina dois relatos de dilúvio?