De Noé a Abraão e a Moisés: Evidências de Lacunas Genealógicas em Gênesis, Parte 2 de 5


O (bebê) Moisés é encontrado - Sébastien Bourdon, c. 1655-1660 (National Gallery of Art)


Leia a Parte 1 - Parte3


Obs.: Onde não indicado, os nomes próprios e citações do texto bíblico são da ARC.

por Hugh Henry e Daniel Dyke
26 de julho de 2012

As genealogias bíblicas têm sido frequentemente usadas para tentar calcular uma data para a criação, que é então citada como suporte para uma Terra jovem. No entanto, um exame mais detalhado do hebraico antigo revela evidências de lacunas nessas genealogias, tornando-as inadequadas para tais cálculos. A história de Moisés, em particular, demonstra exatamente essa lacuna.

Na parte 1 desta série, discutimos a importância fundamental da palavra hebraica yālad – comumente traduzida como “gerou” (na maioria das traduções para o português), “foi pai de” (trechos da NTLH, PBT09 e BPTEX) ou “teve [fulano ou ‘filhos e filhas’]” (NBV, NVT e VFL) – no cálculo de datas bíblicas como a criação e o dilúvio de Noé. Datadores assumem que yālad implica uma relação pai-filho nas passagens genealógicas bíblicas. Contudo, a história de Moisés parece demonstrar que yālad implica apenas um relacionamento familiar geral e, portanto, oferece forte evidência de lacunas genealógicas no registro bíblico.

Considere Anrão e Joquebede, o casal comumente chamado de “pais” de Moisés. A Bíblia registra Anrão como neto do terceiro filho de Jacó, Levi (Êxodo 6:16, 18). Anrão casou-se com Joquebede, filha de Levi e tia de Anrão, que yālad (“deu à luz”) Moisés para ele (Êxodo 6:20; Números 26:59 NVI). Moisés é descrito como o bēn (“filho” ou “criança”) de Anrão nos registros genealógicos em 1 Crônicas 6:3 e 23:13.

As traduções em língua portuguesa da Bíblia, portanto, fazem parecer que Moisés é filho de Anrão e Joquebede. No entanto, um exame mais minucioso do texto sugere que isso é impossível. Com base nas informações cronológicas da Bíblia, calculamos que Anrão teria pelo menos 216 anos (362 no máximo) na época do nascimento de Moisés. No entanto, de acordo com Êxodo 6:20, Anrão morreu aos 137 anos! Deve haver uma lacuna nos registros genealógicos de Moisés. (Nossos cálculos são detalhados e mapeados no apêndice no final deste artigo.)

Da mesma forma, Joquebede teria pelo menos 255 anos (350 no máximo) na época do nascimento de Moisés. Se isso fosse verdade, então a história de Sara dando à luz Isaque aos 90 anos (Gênesis 17:17, 21:5) nos deixaria pálidos, em comparação – ainda assim a Bíblia coloca grande ênfase nisso como um milagre de Deus. À luz da história de Isaque, parece improvável que as Escrituras deixem de comentar que Moisés nasceu de uma mulher de idade tão avançada – especialmente porque ele é o terceiro filho de uma família aparentemente rotineira na qual seus irmãos, Arão e Miriam, eram ambos apenas alguns anos mais velhos que ele.

Deve-se notar que as lacunas genealógicas podem ocorrer antes ou depois de um indivíduo nomeado. Ou seja, a lacuna pode estar entre Levi e Anrão/Joquebede ou entre Anrão/Joquebede e Moisés. No entanto, o detalhe fornecido na narrativa parece suficiente para concluir que é o último neste caso. Como observou o estudioso do Antigo Testamento, William Henry Green, “Anrão e Joquebede não foram os pais imediatos, mas os ancestrais de Arão e Moisés”. [1] Portanto, yālad como usado em Êxodo 6:20, Números 26:59 e 1 Crônicas 6:3, 23:13 significa que Moisés é um descendente, não um filho, de Anrão e Joquebede – provando uma lacuna nos registros genealógicos de Moisés.

Como demonstração adicional dessa hipótese, o censo inicial dos israelitas após o êxodo do Egito fornece fortes evidências de que deve ter havido muitas gerações entre Moisés e Anrão e o pai de Anrão, Coate. O censo registra 8.600 descendentes masculinos de Coate com pelo menos um mês de idade, incluindo 2.750 entre 30 e 50 anos (Números 3:27-28, 4:35-37). Aos 80 anos, o próprio Moisés estava entre os descendentes mais velhos de Coate na época do Êxodo. Todavia, se Moisés era neto de Coate, parece improvável que Coate tivesse tantos 8.600 descendentes masculinos no Êxodo, incluindo 2.750 apenas uma geração mais jovem que Moisés.

A importância de Hārâ nas relações entre pais e filhos

Além disso, observe que Êxodo 2:1-2a não menciona os pais de Moisés:

E foi-se um varão da casa de Levi e casou com uma filha [bat, “filha” ou “parente feminino”] de Levi. E a mulher concebeu [hārâ], e teve [yālad] um filho,

Observe também a diferença entre a verborragia usada nesses versículos e o registro genealógico. A mãe anônima de Moisés concebeu (hārâ) e deu à luz/teve (yālad), enquanto apenas yālad é usado quando se refere ao relacionamento de Joquebede com Moisés. Essa diferença parece reforçar a sugestão de que, embora Anrão e Joquebede sejam os ancestrais de Moisés, eles não são seus pais.

Uma questão lógica é, se Anrão e Joquebede não são os pais de Moisés, por que eles são mencionados em sua genealogia, enquanto seus pais reais são anônimos? A resposta pode ser encontrada em Levítico 18:12 (NVI): “Não se envolva sexualmente com a irmã do seu pai; ela é parenta próxima do seu pai” A relação entre Anrão e Joquebede era contrária às leis que Deus deu por meio de Moisés (mesmo que essas leis só tenham sido dadas mais tarde). Anrão e Joquebede podem ser considerados importantes porque ilustram um relacionamento que Deus mais tarde definiu como pecaminoso. Deus, por meio de Moisés, pode estar deixando claro que Ele nos conhece intimamente, incluindo os detalhes menos atraentes. Esta pode ser a mesma razão pela qual a Bíblia faz outras revelações, como:

  • Gênesis 38 detalha a relação ilícita [2] entre Judá e sua nora Tamar, dando pouca atenção aos casos maritais dos outros filhos de Jacó.
  • Êxodo 6 menciona que um dos filhos de Simeão era “filho de uma cananeia” (Êxodo 6:15, NVI), mas não diz nada sobre as outras esposas de Simeão. Abraão insistiu que Isaque não deveria se casar com uma cananeia (Gênesis 24:1-4) e Isaque ficou “descontente” quando Esaú tomou esposas cananeias (Gênesis 28:8).
  • As únicas mulheres mencionadas na genealogia de Jesus (Mateus 1:3, 5-6) são Tamar, Raabe, a prostituta, Rute, a moabita, e Bate-Seba, a adúltera.

Na verdade, o uso de hārâ e yālad com os pais de Moisés em Êxodo 2:1-2 pode fornecer a chave para possíveis lacunas (ou falta delas) nas genealogias bíblicas. Parece que hārâ (ou um derivado de hārâ) ou uma narrativa de nascimento em outra forma é normalmente usada sempre que o autor bíblico deseja estabelecer um relacionamento definitivo entre pais e filhos. Não podemos afirmar que este é sempre o caso; no entanto, hārâ ou uma forma ou termo relacionado frequentemente aparece – com ou sem yālad – em histórias sobre outros personagens bíblicos proeminentes:

  • Caim e Abel (Gênesis 4:1-2)
  • Enoque (Gênesis 4:17)
  • Ismael (Gênesis 16:4-5)
  • Moabe e Bem-Ami (Gênesis 19:36 NVI)
  • Isaque (Gênesis 21:2)
  • Rúben, Simeão, Levi e Judá (Gênesis 29:32-35)
  • Dã e Naftali (Gênesis 30:5, 7)
  • Issacar e Zebulom (Gênesis 30:17, 19)
  • José (Gênesis 30:23)
  • Er e Onã (Gênesis 38:3-4)
  • Perez e Zerá (Gênesis 38:18)
  • Samuel (1 Samuel 1:20)
  • Obede, avô de Davi (Rute 4:13)

Pode-se dizer que hārâ representa o físico, enquanto yālad representa o resultante. Se apenas a palavra yālad aparecer, é preciso estar alerta para possíveis lacunas genealógicas. Uma relação pai-filho é garantida apenas se hārâ ou uma forma ou termo relacionado for usado (ou se houver uma narrativa de nascimento); caso contrário, a relação precisa é desconhecida. Leitores de Bíblias em português devem ter cuidado com “gerou” (na maioria das traduções para o português), “foi pai de” (trechos da NTLH, PBT09 e BPTEX) ou “teve [fulano ou ‘filhos e filhas’]” (NBV, NVT e VFL), a menos que uma relação pai-filho seja estabelecida de outra forma.

Não estamos afirmando que ocorrem lacunas em todos os registros genealógicos nos quais apenas yālad aparece; estamos apenas afirmando que não podemos ter certeza de uma forma ou de outra. Entretanto, é digno de nota que hārâ ou uma forma ou termo relacionado nunca aparece em Gênesis 5, 10 ou 11, nem esses capítulos incluem narrativas de nascimento inequívocas. Portanto, lacunas genealógicas são uma possibilidade real especialmente nessas passagens – e essas passagens são particularmente cruciais para os cálculos de datadores bíblicos.

Contudo, seja qual for o motivo das lacunas na genealogia pessoal de Moisés, este exemplo deixa claro que as lacunas genealógicas são um fenômeno mosaico. Se Moisés insere uma lacuna em seu próprio registro genealógico sem mencionar, é provável que o conceito de uma genealogia ininterrupta não seja importante para ele e que as lacunas provavelmente sejam encontradas em outras partes da literatura mosaica, talvez especialmente quando o autor está lidando com coisas mais distantes de seu próprio momento histórico.

A próxima parte desta série investiga a história dos filhos de Noé, Sem, Cam e Jafé. Ela mostrará como a suposição de que yālad sempre e literalmente significa “gerou” (na maioria das traduções para o português), “foi pai de” (trechos da NTLH, PBT09 e BPTEX) ou “teve [fulano ou ‘filhos e filhas’]” (NBV, NVT e VFL), em Gênesis 5, 10 e 11, apresenta um problema hermenêutico ignorado por datadores bíblicos.

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Apêndice: Cálculos para Anrão, Joquebede e Moisés

A tabela e os detalhes abaixo demonstram como calculamos as informações cronológicas para a família de Moisés, especificamente para Anrão e Joquebede.

Todas as datas referem-se à data de nascimento de Levi, quatro anos (±1 ano) antes de José. O topo das barras azuis indica a data de nascimento. As barras roxas indicam o tempo de vida da pessoa. Nos casos em que as datas de nascimento e/ou falecimento devem ser estimadas, são fornecidos dois gráficos de barras: um para a data de nascimento mais próxima e outro para a data mais recente. (Como o tempo de vida de Joquebede é desconhecido, apenas as datas de nascimento máxima e mínima estão incluídas.) As barras amarelas indicam o tempo entre as primeiras e últimas datas de morte da pessoa e o nascimento de Moisés. (No caso de Joquebede, isso ocorre entre a primeira e a última data de nascimento.)


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A chegada da família de Jacó ao Egito (sob o patrocínio de José) fornece um bom ponto de referência para calcular a cronologia relativa de Anrão, Joquebede e Moisés. Os anos antes da descida ao Egito são designados como “AD” e os anos depois da descida ao Egito como “DD”. [1] Quando não é possível calcular com precisão a idade de uma pessoa, um intervalo é calculado, assumindo que um homem é pai de uma criança não antes dos 15 anos (puberdade aos 14 anos) e não depois de seu leito de morte (mesmo que no caso de Coate gerando Anrão, isso pareça ridículo).

A cronologia de José está bem documentada, fornecendo uma boa base para estimar a cronologia de Anrão e Joquebede. José foi o último filho nascido de Jacó em Padã-Arã, aparentemente no final dos segundos sete anos de serviço de Jacó a seu sogro (Gênesis 29:20-30, 30:25-26). Ele foi vendido como escravo aos 17 anos (Gênesis 37:2) e entrou para o serviço do Faraó aos 30 anos (Gênesis 41:46-47, 45:11). Isso o faria ter 37 anos quando a fome começou (Gênesis 41:47) e 39 anos quando sua família desceu ao Egito, com cinco anos de fome restantes (Gênesis 45:11). Consequentemente, José nasceu em 39 AD.

Levi era o irmão mais velho de José e o terceiro filho de Jacó. A Bíblia registra que Jacó gerou 12 filhos com quatro mães em sete anos (seis deles com a mãe de Levi, Leia). Como não há nascimentos múltiplos, isso só é biologicamente possível se as gestações de Leia ocorrerem o mais rápido possível, e é isso que supomos. Portanto, Levi provavelmente nasceu três anos após o casamento de Jacó com Leia e Raquel, e José nasceu quatro anos depois de Levi. Visto que Levi viveu 137 anos (Êxodo 6:16), assumimos que Levi nasceu em 43 AD e morreu em 96 DD.

Coate é o segundo dos três filhos de Levi (Gênesis 46:8-11) e viveu 133 anos (Êxodo 6:18). Ele desceu ao Egito com a família (Gênesis 46:8-11). Portanto, assumimos que seu nascimento poderia ter ocorrido em 27 AD (um ano depois de seu irmão mais velho, quando Levi tinha 16 anos) e até 2 AD (um ano antes de seu irmão mais novo, que também desceu ao Egito). Isso coloca a primeira morte de Coate em 107 DD e a mais recente em 132 DD.

Anrão foi o primeiro dos quatro filhos de Coate e viveu 137 anos (Êxodo 6:18-20). Com base no nascimento mais antigo de Coate mais 15 anos, assumimos que o nascimento mais antigo possível de Anrão é 12 AD – mas pode ser tão tardio quanto 1 DD se Gênesis 46 incluir uma lista completa da descendência de Jacó que desceu ao Egito. Fazendo a improvável suposição de que todos os quatro filhos de Coate foram concebidos nos últimos quatro anos de sua própria vida, colocamos a última data possível de nascimento de Anrão em 130 DD. Portanto, sua primeira morte possível foi 126 DD e a última foi 267 DD.

Joquebede é a esposa de Anrão e filha de Levi (Êxodo 6:20). Sua primeira data de nascimento é 1 DD – já que ela nasceu no Egito (Números 26:59) – e a última foi 96 DD (assumindo a concepção de Levi no leito de morte). Sua idade na morte é desconhecida.

Moisés tinha 80 anos na época do Êxodo (Êxodo 7:7), 430 anos após a descida ao Egito. [2] Portanto, Moisés nasceu por volta de 351 DD.

A matemática simples agora nos mostra que no ano do nascimento de Moisés, 351 DD: a idade de Anrão estaria entre 216 (mínimo) e 362 anos (máximo) – até 225 anos além de sua expectativa de vida registrada. A idade de Joquebede estaria entre 255 (mínimo) e 350 (máximo) anos.

Mesmo com as amplas variações observadas acima, erros são possíveis, pois tivemos que estimar as datas de nascimento e morte de Levi, Coate, Anrão e Joquebede. Essas estimativas, porém, não devem ter mais de ±10 anos de diferença, dessa forma, ainda sustentando a conclusão básica.

Notas de Fim
  1. William Henry Green, “Primeval Chronology”, Bibliotheca Sacra (abril de 1890): 293.
  2. “Não se envolva sexualmente com a sua nora.” (Levítico 18:15a, NVI).

Notas Finais do Apêndice

1.    Observe que um ano deve ser adicionado aos cálculos indo de BD para PD – assim como indo de AD para DD - porque não há ano 0.
2.    A cronologia do bispo Ussher muda isso para 215 anos. Nesse caso, Ussher segue a Septuaginta (LXX), que acrescenta uma frase extra a Êxodo 12:40: “e a terra de Canaã”. Acrescentar esta frase, que não é encontrada no texto hebraico, implica que os 430 anos são contados entre o tempo em que Abraão partiu de Harã (Gênesis 12:4) e o Êxodo: 215 anos entre a partida de Abraão e a descendência de Jacó, e 215 anos entre a descendência de Jacó e o Êxodo. Em seu livro A Survey of Israel's History [Uma pesquisa sobre a história de Israel] (Grand Rapids: Zondervan, 1986), Leon Wood argumenta persuasivamente que o texto hebraico está correto.
Como a cronologia de Ussher geralmente segue o texto hebraico, sua escolha de seguir a LXX nesse caso pode implicar que Ussher e os tradutores da LXX estavam cientes do problema de Anrão/Joquebede/Moisés, porque a LXX redefine o ano de nascimento de Moisés para 136 DD, e torna possível que Anrão e Joquebede sejam seus pais porque suas faixas etárias, à época do nascimento, seriam de 1 a 147 e 40 a 135 anos, respectivamente. Todavia, embora um relacionamento pai-filho seja possível, ainda parece improvável porque para Joquebede ter apenas 40 anos no nascimento de Moisés, ela teria sido o produto de uma concepção no leito de morte por Levi; e se Joquebede tinha 90 anos quando Moisés nasceu (idade de Sara no nascimento de Isaque [Gênesis 17:17, 21:5]), Joquebede teria sido concebida quando Levi tinha 91 anos.
Portanto, o nascimento de Moisés, usando as datas da LXX, ainda seria quase certamente um milagre como o de Isaque, e nosso argumento permanece: parece improvável que Moisés deixasse de mencionar isso.


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