De Noé a Abraão e a Moisés: Evidências de lacunas genealógicas na literatura mosaica, parte 3 de 5


Paisagem com Noé, oferecendo um sacrifício de gratidão - Joseph A Koch e Gottlieb Schick, 1803 (Städel Museum - https://sammlung.staedelmuseum.de/en)
Paisagem com Noé, oferecendo um sacrifício de gratidão - Joseph A Koch e Gottlieb Schick, 1803 (Städel Museum)


Leia a Parte 2 - Parte 4

Obs.: Onde não indicado, os nomes próprios e citações do texto bíblico são da ARC. Os textos entre "{ }" são comentários meus.

por Hugh Henry e Daniel Dyke
30 de julho de 2012

Continuamos esta série sobre lacunas nos registros genealógicos das Escrituras examinando o legado de Noé e seus filhos. Em particular, esta história apresenta um problema hermenêutico que surge por causa da maneira como os datadores (aqueles que tentam calcular uma data de criação com base em genealogias bíblicas) interpretam uma palavra-chave hebraica.

Conforme demonstrado na parte 2 desta série, a história de Moisés apoia a ideia de lacunas nas genealogias bíblicas. Em particular, mostra que a palavra hebraica yālad (geralmente traduzida como “gerou” [na maioria das traduções para o português], “foi pai de” [trechos da NTLH, PBT09 e BPTEX] ou “teve [fulano ou ‘filhos e filhas’]” [NBV, NVT e VFL]) não implica necessariamente uma relação pai-filho; também pode se referir a uma conexão familiar mais geral. Essa descoberta derruba a suposição central daqueles que tentam calcular uma data exata da criação usando genealogias bíblicas. Neste artigo, discutiremos como a suposição de que yālad sempre significa “gerou” ou “foi o pai de” apresenta um problema hermenêutico crítico.

As histórias dos três filhos de Noé e de Abraão (discutidas na parte 4) ilustram o problema hermenêutico. Considere Gênesis 5:32 e 11:26:

“E era Noé da idade de quinhentos anos e gerou [yālad] Noé a Sem, Cam e Jafé.” (Gênesis 5:32)

 “E viveu Tera setenta anos e gerou [yālad] a Abrão [Abraão], a Naor e a Harã.” (Gênesis 11:26)

Se os estudiosos que tentam calcular uma linha do tempo bíblica precisa aplicam a mesma interpretação de yālad a esses versículos como fazem a Gênesis 5, 10 e 11 e outras passagens genealógicas, a única conclusão consistente e literal é que os filhos de Noé, Sem, Cam e Jafé eram trigêmeos, assim como Abraão, Naor e Harã. No entanto, poucos (se houver) estudiosos sugerem que esses homens eram trigêmeos. Em outras palavras, eles interpretam yālad em Gênesis 5:32 e 11:26 de maneira diferente do que no resto das passagens genealógicas em que ocorre; sua hermenêutica é inconsistente.

Então, por que esses patriarcas raramente são considerados trigêmeos? A resposta certamente deve ser contexto e narrativa. Por exemplo, o nascimento de gêmeos entre os patriarcas é saudado com celebração e uma narrativa de nascimento. Trigêmeos são trinta vezes mais incomuns do que gêmeos, mas nem Gênesis 5:32 nem 11:26 incluem uma narrativa sobre o nascimento de trigêmeos – uma omissão digna de nota. Além disso, com relativamente poucos patriarcas citados na Bíblia, é improvável que haja dois conjuntos de trigêmeos.

Sem, Cam e Jafé

A narrativa do Dilúvio parece deixar claro que os filhos de Noé, Sem, Cam e Jafé, não eram trigêmeos:

“E era Noé da idade de seiscentos anos, quando o dilúvio das águas veio sobre a terra.” (Gênesis 7:6).

“…Sem era da idade de cem anos e gerou a Arfaxade, dois anos depois do dilúvio.” (Gênesis 11:10b).

“E despertou Noé do seu vinho e soube o que seu filho menor lhe fizera.” (Gênesis 9:24).

Esses versículos não apenas mostram que os três não são trigêmeos, mas também fornecem evidências de que Gênesis 5:32 não lista os três em ordem de nascimento:

  • Sem tem 100 anos dois anos após o dilúvio, quando Noé tem 602 anos (contados a partir do início do dilúvio, ou 603 anos contados a partir do fim do dilúvio). Portanto, Sem nasceu quando Noé tinha 502 (ou 503) anos, não 500 anos.
  • Cam é um filho mais novo (talvez o mais novo).
  • Visto que Gênesis 5:32 diz que Noé “gerou” quando tinha 500 anos de idade, Jafé deve ter sido o filho nascido naquela época, tornando-o o mais velho.

Jafé é o mais velho
 
Gênesis 10:21 parece confirmar que Jafé é o mais velho, embora algumas traduções modernas para o inglês discordem {as traduções em português não fazem isso}. Em hebraico, este versículo afirma que Sem é o ׳āh (“irmão ou parente masculino”) de Jafé, o gādôl (“grande”). Todas as Bíblias inglesas modernas traduzem gādôl como significando “irmão mais velho” {as Bíblias em português também}, mas discordam quanto ao antecedente. JPS, NASB, ESV e RSV {traduções para a língua inglesa} traduzem o versículo para dizer que Sem é o irmão mais velho. Em contraste, a NIV e a AMP {traduções para a língua inglesa} dizem que Jafé é o mais velho, e a LXX, KJV, NKJV e YLT {traduções para a língua inglesa, com exceção de LXX, que é a Septuaginta} leem “Jafé, o ancião”.

Essa disparidade nas traduções para o inglês reflete a ambiguidade do hebraico bíblico. Parece impossível determinar com precisão qual irmão é mais velho. Entretanto, o grego na Septuaginta (LXX) afirma claramente que Jafé é o irmão mais velho. Considerando a comparação acima, de Gênesis 7:6, 9:24 e 11:10, parece provável que a LXX – muitas vezes considerada como refletindo a tradição judaica no terceiro século a.C. – esteja esclarecendo a ambiguidade do hebraico bíblico em Gênesis 10:21. Portanto, acreditamos que as traduções que listam Sem como o mais velho o fazem apenas porque ele é listado primeiro em Gênesis 5:32.

Como apoio adicional à primazia de Jafé, a genealogia em 1 Crônicas 1 lista a descendência de Jafé primeiro (1 Crônicas 1:5-7), a de Cam (1 Crônicas 1:8-16) em segundo lugar e a de Sem (1 Crônicas 1:17-27) por último). Josefo descreve Sem como “o terceiro filho de Noé”; e o bispo James Ussher – cuja cronologia da criação no século XVII continua a influenciar as visões criacionistas da Terra jovem – lista Jafé como o mais velho e Sem como o segundo filho.

Então, se Sem não é o mais velho, por que ele aparece primeiro em Gênesis 5:32? Suspeitamos que a lista esteja na ordem de importância relativa para os antigos israelitas:

  • Sem é ancestral da raça judaica e, portanto, o mais importante.
  • Cam é o ancestral dos egípcios e cananeus, que escravizaram os israelitas e foram seus adversários contínuos.
  • Jafé, como ancestral dos povos do norte que tiveram relativamente pouco contato com os israelitas na época em que o Antigo Testamento foi escrito, era o menos importante para os israelitas.

Outra interpretação é que Sem é listado primeiro porque seu pai declarou que ele receberia a parte do filho mais velho na herança, embora ele não fosse o mais velho. Um exemplo disso ocorre na história de Jacó: José recebe primazia sobre seu irmão mais velho, Rúben, e Jacó dá a bênção do filho mais velho ao filho mais novo de José, Efraim.

A parte 4 desta série usa a história de Abraão para ilustrar ainda mais os problemas hermenêuticos ignorados pelos datadores bíblicos. Também mostraremos como a flexibilidade nos termos familiares do hebraico bíblico aumenta a probabilidade de que existam lacunas não reconhecidas nos registros genealógicos bíblicos.

Notas de Fim
  1. cf. Gênesis 25:24-26, 38:27-30.
  2. Por exemplo, antes do advento dos tratamentos de fertilidade modernos por volta de 1980, nos Estados Unidos, gêmeos ocorreram em cerca de 3 de 1.000 nascimentos (0,3%) e trigêmeos em menos de 1 em 1.000 nascimentos (0,1%); veja o HYPERLINK “https://www.marchofdimes.com/pregnancy/trying_multiples.html”. Não parece haver razão para assumir que a frequência de nascimentos múltiplos entre os antigos era maior do que isso.
  3. “Shem . . . the elder (or older) brother of Japheth. . .” [Sem. . . o irmão mais velho de Jafé. . .] (Gênesis 10:21, JPS, ESV, NASB, RSV).
  4. “Sem, cujo irmão mais velho era Jafé” (Gênesis 10:21, NVI); “Shem, . . . the younger brother of Japheth ” [Sem, . . . o irmão mais novo de Jafé] (Gênesis 10:21, AMPC).
  5. καὶ τῷ Σημ ἐγενήθη καὶ αὐτῷ πατρὶ πάντων τῶν υἱῶν Εβερ ἀδελφῷ Ιαφεθ τοῦ με ίζονος (Gênesis 10:21, BGT). O adjetivo grego está, sem dúvida, ligado a Jafé, não a Sem, confirmando que Jafé é o irmão mais velho.
  6. William Whiston, trans., The Works of Josephus, “The Antiquities of the Jews” 6, n.º 4 (Peabody, MA: Hendrickson, 1987), 37.
  7. James Ussher, The Annals of the World (Green Forest, AR: Master Books, 2003), 19. cf. Gênesis 48.

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