Debate sobre a Idade Histórica: Dependência de Traduções (4 de 5)


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Leia também: Parte 1 - Parte 2 - Parte 3 - Parte 5

Observações: Trechos entre "{ }" são comentários, notas, acréscimos meus. Os trechos da Bíblia King James citados são de sua versão traduzida para o português.

por John Millan
10 de julho de 2009

A versão King James {a Almeida Revista e Corrigida também} traduz o sexto mandamento como “Não matarás” (Êxodo 20:13; Deuteronômio 5:17). As pessoas podem usar isso como prova de que a pena capital é antibíblica? Na verdade, não. O original hebraico nesses versículos refere-se especificamente ao assassinato, e não a todas as formas de matar. [1] Este exemplo destaca a necessidade de considerar outras traduções ou, melhor ainda, de voltar ao texto original.

A grande maioria dos teólogos e estudiosos (tanto do passado como do presente) confiaram no grego, no latim, no inglês/português ou em outras traduções para compreender o Antigo Testamento (AT). Esta série de artigos concentrou-se nas implicações que essa prática tem para a interpretação de Gênesis 1-11, em particular na parte 1. A parte 2 e a parte 3 discutiram como as diferenças em [linguagem] e [cultura] podem afetar a forma como interpretamos essas passagens críticas. Aqui nos concentramos nos papéis que erros ou problemas em traduções específicas desempenham nos debates sobre Gênesis.

As Traduções Mais Influentes

Septuaginta (ou LXX): As Escrituras Hebraicas foram traduzidas pela primeira vez para o grego a partir de c. 282 a.C.. Esta versão foi chamada de Septuaginta (que significa 70) porque o trabalho teria sido feito por 70 rabinos. Lendas cresceram em torno de sua formação, imbuindo-a de autoridade especial. Foi particularmente influente entre os judeus helenísticos (de língua grega) que viviam fora de Israel, bem como entre os da igreja primitiva.

Bíblia Latina Antiga (ou Vetus Latina): A Bíblia Latina Antiga refere-se a uma coleção de traduções da Septuaginta grega para o latim. Esses manuscritos devem ser entendidos como “traduções de traduções” e não como traduções verdadeiras do hebraico. O latim antigo alimentou os crentes ocidentais que sabiam latim, mas não sabiam grego ou hebraico.

Vulgata: Depois que o latim começou a dominar a Europa, Jerônimo (século V) foi contratado pelo Papa para criar uma única tradução latina autorizada para substituir as antigas traduções latinas. Originalmente, Jerônimo foi instruído a apenas revisar o latim antigo comparando-o com a Septuaginta e o Novo Testamento grego porque as pessoas estavam familiarizadas com o latim antigo e não seriam receptivas a uma mudança significativa na leitura do texto. Jerônimo queria traduzir o AT do hebraico e acabou fazendo exatamente isso. Ele ainda teve que ficar próximo das traduções anteriores, então alguns detalhes (e problemas) da Septuaginta e das traduções do latim antigo foram transferidos para a Vulgata.

Versão King James (KJV): A quinta de uma série de Bíblias em inglês “autorizadas”, a KJV foi encomendada em 1611 pelo rei James I da Inglaterra. Embora seu AT tenha sido traduzido diretamente do hebraico, em muitos casos a KJV segue a Septuaginta ou Vulgata. (Isso ocorreu principalmente quando os tradutores tiveram dificuldade em entender o hebraico original.) Por exemplo, o uso de “firmamento” em Gênesis 1:8 é uma transferência direta do firmamentum latino da Vulgata, em vez de uma tradução direta do hebraico original (raqiya ou “céu”). [2] Contudo, a KJV permaneceu a tradução dominante entre os protestantes de fala inglesa até o século XX.

Como mostra a história, a “inércia transicional” permitiu que problemas nas primeiras traduções passassem para traduções mais recentes (como no uso de “firmamento” na KJV). Além disso, todas essas quatro traduções foram popularmente tratadas como inspiradas em sua própria época; tantos crentes os consideravam de autoridade igual ou maior que o original hebraico. [3] Como resultado, os erros nessas traduções foram frequentemente defendidos em vez de corrigidos.

Seu Impacto na Interpretação

O debate sobre a idade da Terra e os dias da criação envolve descobrir qual ponto de vista entende Gênesis “literalmente”. Mas, em última análise, “literal” aplica-se apenas ao original hebraico. As traduções são produções humanas e devem ser julgadas de acordo com a fidelidade com que reproduzem o texto original.

Embora os tradutores da Bíblia se esforcem para ser fiéis em seu trabalho, pequenos problemas ou erros ainda podem surgir. Felizmente, a maioria das ocorrências é insignificante. Mas podemos identificar uma série de casos em que questões de tradução tiveram um efeito direto e duradouro na forma como os teólogos interpretaram os primeiros capítulos de Gênesis.

Os Filhos de Deus/Gigantes

Gênesis 6:1-4 diz que os “filhos de Deus” tiveram filhos com as “filhas dos homens”. Historicamente, a forma mais popular de entender esta passagem era que os “filhos de Deus” referem-se aos anjos ou aos descendentes da linhagem piedosa de Sete, filho de Adão. Os tradutores da Septuaginta, no entanto, distorceram as interpretações em direção a um ponto de vista, substituindo “filhos de Deus” por “anjos”. (A visão dos filhos de Deus como anjos estava na moda nos círculos judaicos daquela época. Ela aparece no livro apócrifo de Enoque; portanto, os tradutores da Septuaginta estavam simplesmente refletindo o pensamento popular.) Isso ajuda a explicar por que a interpretação do anjo manteve domínio exclusivo na igreja durante os primeiros dois séculos. [4] Um segundo exemplo pode ser encontrado nessa mesma passagem onde a Septuaginta traduziu nefilim (literalmente “caídos”) como “gigantes” (grego gigos). Como resultado, a visão de que os nefilins foram “gigantes” era generalizada na igreja primitiva.

Tarde-Manhã-Dia em Gênesis 1

No centro da controvérsia sobre os dias da criação está a frase tarde-manhã-dia, que aparece seis vezes em Gênesis 1. A KJV traduz: “E a tarde e a manhã foram o enésimo dia”. Na verdade, essa interpretação deturpa o original hebraico de diversas maneiras e, em cada caso, fornece suporte artificial para uma visão de dias de calendário.

Primeiro, o verbo (“era”) aparece duas vezes no hebraico, mas a KJV na verdade deixa de fora a segunda ocorrência e assim a reduz a uma frase simples. A Young's Literal Translation (Tradução Literal de Young, YLT) diz corretamente: “e há uma noite, e há uma manhã-dia”. Segundo, a KJV diz “o primeiro dia” em Gênesis 1:5, enquanto o hebraico, na verdade, diz “um dia” ou “dia um”. Terceiro, a KJV acrescenta o artigo definido “o” antes de “dia”, embora não esteja presente no hebraico. [5] Por exemplo, Gênesis 1:8 diz “o segundo dia” quando deveria dizer “segundo dia” ou “um segundo dia”. Adicionar “o” facilita a leitura em inglês/português, mas implica que se trata de um período de tempo específico (ou seja, um dia solar) em vez de representar o tempo genericamente. [6] Dado o domínio da KJV durante os últimos séculos, essa tradução incorreta desempenhou um papel importante na popularização da interpretação do dia de calendário entre os falantes de inglês.

As Genealogias de Gênesis

Muitos dos primeiros escritores judeus e cristãos resumiram as idades da paternidade nas genealogias de Gênesis 5 e 11, a fim de calcular o tempo desde Abraão até Adão e a criação. Tais tentativas assumem que estas genealogias não ignoram nomes, mas, como discutido anteriormente, essa suposição é insustentável (ver parte 2 e parte 3 {e esta série de posts já traduzida e publicada aqui no blog}). Para aqueles que optaram por realizar esses cálculos de qualquer maneira, há ainda outro problema: as idades fornecidas na Septuaginta diferem daquelas no hebraico original. Parece que elas foram alteradas para tornar mais suave a diminuição gradual da expectativa de vida. [7] Assim, as estimativas para o tempo de existência de Adão e Eva (novamente assumindo que não há lacunas) estavam na faixa de 5.700 – 5.200 a.C. com base nos valores modificados na Septuaginta (e no latim antigo). A Vulgata restaurou os valores hebraicos e, portanto, as tentativas subsequentes situaram Adão por volta de 4.000 a.C. [8] Este pequeno exercício demonstra como o uso da Septuaginta em vez do hebraico trouxe resultados dramaticamente diferentes.

Cronologia Ussher-Lightfoot

Em meados do século XVII, James Ussher e John Lightfoot levaram a visão da Terra jovem das genealogias do Gênesis um passo adiante e publicaram cronologias de eventos bíblicos começando com a criação do mundo em 4.004 a.C. Detalhes de suas cronologias foram incluídos em notas de rodapé e até mesmo em cabeçalhos de algumas Bíblias KJV. A popularidade da KJV entre os protestantes efetivamente espalhou e canonizou esta estimativa para a idade da Terra em todo o mundo de língua inglesa. Isso, por sua vez, ajudou a solidificar suas suposições sobre Gênesis 1-2, 5 e 11. Embora esses erros de cálculo não representem erros no texto da KJV em si, demonstram como uma tradução específica pode moldar dramaticamente o debate sobre a idade.

Concluirei esta série na parte 5 examinando a questão geral de se podemos confiar em nossas traduções da Bíblia.

Meu trabalho completo sobre este tópico ainda não foi publicado. Perguntas sobre isso devem ser direcionadas para KansasCity@Reasons.org.

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Dr. John Millam

Dr. Millam recebeu seu doutorado em química teórica pela Rice University em 1997 e atualmente atua como programador da Semichem em Kansas City.

Notas de Fim
  1. Norman Geisler e Thomas Howe, When Critics Ask, (Wheaton, IL: Victor Books), 78-79.
  2. Rodney Whitefield, Reading Genesis One, (San Jose, CA: R. Whitefield Publisher, 2003), 90-91.
  3. Robert I. Bradshaw, “Creationism and the Early Church”, Creationism and the Early Church, atualizado em 25 de janeiro de 1999. https://www.robibradshaw.com/contents.htm (acessado em 25 de maio de 2009), capítulo 1.
  4. Ibidem, capítulo 5.
  5. Um esclarecimento importante é necessário para minha afirmação de que a tradução original em hebraico da frase noite-manhã-dia não associa o artigo definido (“o”) a “dia”. A tradução YLT omite corretamente o artigo definido nos primeiros cinco dias, mas o inclui no sexto dia, o que parece contradizer minha afirmação. Em hebraico, geralmente se espera que o artigo definido apareça duas vezes neste caso – uma vez com o ordinal “sexto” e uma vez com “dia” – enquanto em inglês/português ele só pode aparecer uma vez. Se o sexto dia fosse um dia definido (isto é, solar), então o hebraico literal deveria ser “o dia seis” ou mesmo “o dia sexto”. Em vez disso, esse versículo diz “dia seis”, o que deixa “dia” indefinido (ou seja, simplesmente um período de tempo), mas enfatiza a noção de “sexto”, tornando-o definitivo. O mesmo é verdade para o “sétimo dia” (Gênesis 2:2-3) – “sétimo” é definido, mas “dia” é deixado indefinido.
  6. Gleason L. Archer, “Reading Between the Fossil Lines”, Facts for Faith, n.⁰ 7 (quarto trimestre de 2001). https://reasons.org/explore/publications/pub_channel/reading-between-the-fossil-lines-2-2 (acessado em 25 de maio de 2009).
  7. William Henry Green, “Primeval Chronology: Are there Gaps in the Biblical Genealogies?” Bibliotheca Sacra 47 (abril de 1890) 285-303. https://www.reasons.org/resources/non-staff-papers/primeval-chronology (acessado em 25 de maio de 2009).
  8. John Millam, “The Genesis Genealogies”, Reasons to Believe. https://reasons.org/explore/publications/articles/the-genesis-genealogies (acessado em 25 de maio de 2009).


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