Debate sobre a Idade Histórica: Criação Ex Nihilo (3 de 4)


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Leia também: Parte 1 - Parte 2 - Parte 4 - "Parte 5"

por John Millam
23 de junho de 2008

A doutrina bíblica mais importante relacionada à criação é a criação ex nihilo, que significa “criação a partir do nada”. Esta crença teologicamente fundamental foi ensinada em importantes declarações de credo [parte 1]. Representa uma linha clara de demarcação entre o Cristianismo e a filosofia grega, que sustentava que a matéria era eterna [parte 2].

A criação ex nihilo, entretanto, também foi muito importante na resposta às afirmações gnósticas. (O gnosticismo representa um grupo de heresias relacionadas que surgiram em meados do século II e combinaram elementos da teologia cristã com ideias gregas.) Uma crença que os gnósticos herdaram dos gregos foi a ideia de que a matéria era má. Eles rejeitaram qualquer conexão entre Deus e a matéria e, portanto, negaram a criação ex nihilo, bem como o nascimento virginal, a encarnação e a morte e ressurreição corporal literal de Jesus. A criação ex nihilo teve um significado apologético ao responder aos gnósticos, demonstrando que Deus poderia usar a matéria para o Seu bom propósito.

A refutação mais extensa do gnosticismo vem de Irineu de Lião, em sua obra-prima, Contra as Heresias. Ele ensinou claramente a criação ex nihilo como um princípio definidor do Cristianismo, em contraste com a especulação gnóstica.

“Eles [os gnósticos] não acreditam que Deus (sendo poderoso e rico em todos os recursos) criou a própria matéria, visto que não sabem o quanto uma essência espiritual e divina pode realizar… Pois, atribuir a substância das coisas criadas ao poder e a vontade dAquele que é Deus de todos é digno de crédito e aceitação. Também é agradável [à razão], e pode-se dizer com razão a respeito de tal crença, que 'as coisas que são impossíveis aos homens são possíveis a Deus'. Embora os homens, de fato, não possam fazer nada do nada, mas apenas da matéria já existente, ainda assim Deus é neste ponto preeminentemente superior aos homens, que Ele mesmo chamou à existência a substância de Sua criação, quando anteriormente ela não existia.” (Irineu, Contra as Heresias 2.10.3-4*)

Irineu também discute a criação ex nihilo em diversas outras passagens.

Tertuliano (século III), o pai da Igreja Latina (Ocidental), fornece a defesa mais significativa da doutrina da criação ex nihilo. Ele escreveu extensivamente contra o gnosticismo e defendeu a criação ex nihilo em seis de suas 30 obras sobreviventes. A mais importante dessas obras é Contra Hermógenes (CH), em que ele defende a criação ex nihilo contra a crença de Hermógenes de que Deus criou o mundo a partir da matéria eterna (pré-existente). Tertuliano aponta que Hermógenes tomou emprestada sua visão dos filósofos estoicos gregos (CH 1) e que ela era herética porque colocava a matéria no mesmo nível do próprio Deus (CH 1-4). Ele argumenta ainda que Gênesis 1 ensina que a matéria é boa (não má) (CH 12, 25) e que Gênesis 1:1 ensina especificamente que Deus criou a matéria (CH 19-22). Em outra passagem, ele argumenta que o universo deve ter um começo assim como tem um fim (isto é, Deus destruirá este universo) (CH 34).

Tertuliano vai um passo além ao argumentar que a criação ex nihilo não é apenas verdadeira, mas também parte da “regra de fé” (latim regula fidei), que ele afirma em três ocasiões diferentes (Contra Hermógenes, 33; A Receita Contra Heresias, 13; O Véu das Virgens, 1). A “regra de fé” representava as doutrinas-chave partilhadas por todos os crentes (distintas das questões discutíveis) e servia como uma importante linha divisória entre a ortodoxia cristã e a heresia. As opiniões de Tertuliano nessas três passagens podem ser destiladas em quatro pontos essenciais:

A criação ex nihilo é uma doutrina essencial. Ele colocou-o na “regra de fé”, o que significa que foi universalmente aceito desde o início e além do debate. Ele coloca especificamente a criação ex nihilo ao lado de outras doutrinas fundamentais, como a natureza de Deus, o nascimento virginal de Jesus e a morte física e ressurreição literal de Jesus.

A matéria tem um começo. Somente Deus é eterno e incriado; portanto, a matéria deve ter um começo (ou seja, deve ter sido criada).

A matéria é criada por Deus. Não basta dizer que a matéria é criada; Deus deve ser seu criador. Isto atinge o cerne do gnosticismo, que sustentava que a matéria era má e, portanto, que Deus não a teria criado. Tertuliano rejeita tais ideias fantasiosas e declara claramente que Deus é o autor da matéria.

Deus poderia ter moldado a matéria previamente existente (mas não eterna). Gênesis 1:3-31 poderia representar Deus formando coisas a partir da matéria que Ele criou anteriormente (Gênesis 1:1), mas inicialmente sem forma (Gênesis 1:2). Essa distinção é importante porque deixa espaço para a visão anteriormente ensinada por Justino Mártir e Clemente de Alexandria (ver [parte 2]).

Orígenes (século III) segue de perto as linhas de Tertuliano ao declarar a criação ex nihilo entre os "ensinamentos dos apóstolos" (Primeiros Princípios, Prefácio 4) e "artigos da Igreja" (Primeiros Princípios, 3.5.1). Em ambos os casos, essas declarações são sinônimas da “regra de fé” de Tertuliano. Orígenes também coloca a criação ex nihilo ao lado de outras doutrinas cristãs essenciais.

Além dos já citados, sabemos que Minúcio Félix, Lactâncio, Vitorino, Atanásio, Efrém, o Sírio, Ambrósio, João Crisóstomo, Basílio e Agostinho também acreditavam na criação ex nihilo. Ao todo, 18 pais da igreja primitiva incluídos neste estudo ensinaram a criação ex nihilo, e nenhum ensinou a matéria eterna. Esta aceitação generalizada continuou até tempos recentes.

A parte 4 examinará a importância dessa doutrina para a ciência moderna.

As informações aqui apresentadas são baseadas em pesquisas não publicadas. Dúvidas a respeito devem ser direcionadas ao autor (kansascity@reasons.org).

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Dr. John Millam

Dr. Millam recebeu seu doutorado em química teórica pela Rice University em 1997 e atualmente atua como programador da Semichem em Kansas City.

Leitura adicional:

  • Robert Bradshaw, “Creationism and the Early Church”.
  • Robert Lethem, “‘In the Space of Six Days’: The Days of Creation from Origen to the Westminster Assembly”, Westminster Theological Journal 61, n.º 2, (1999), 149-74.
  • Kenneth Richard Samples, A World of Difference, (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2007).


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* O texto aqui é a tradução direta da citação feita no artigo original, em inglês. Não foi consultada a obra de Irineu em português.



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