"O primogênito de toda a criação" – Jesus foi criado?


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27 de maio de 2023

O primogênito de toda a criação

Os leitores muitas vezes param e ficam intrigados com Colossenses 1:15 e sua declaração de que Jesus Cristo, o Filho de Deus, é “o primogênito de toda a criação”. Primogênito de toda a criação? Isso significa que Cristo “nasceu” e que, portanto, houve um tempo em que ele não existia? Claro, ele ainda seria o primeiro a existir, o que seria uma espécie de lugar de primazia, mas ele seria um ser criado e finito. Mas então isso não significaria que ele não é a segunda pessoa da Trindade, que ele não é “Deus (vindo) de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, como diz o antigo Credo Niceno? [1] O que tudo isso significaria para o que a igreja cristã ortodoxa sempre confessou a respeito da pessoa de Cristo?

Tais questões não são novas. Um influente teólogo e líder da igreja chamado Arius (ca. 250-336 dC) ensinou que Cristo era um ser exaltado, mas meramente finito, negando a natureza divina de Cristo. Não existe registro de Ário comentando diretamente Colossenses 1:15, mas ele pode tê-lo usado para apoiar seus ensinamentos ou interpretado de acordo com sua posição. O imperador Constantino convocou o Concílio de Nicéia em 325 EC, em parte como uma resposta aos ensinamentos de Ário, e encarregou o concílio (composto por bispos de todo o império) de resolver o problema. O concílio sustentou a natureza divina de Cristo e denunciou os pontos de vista de Ário como heréticos, e redigiu o que viria a se tornar o Credo Niceno para formalizar e promulgar essa decisão. O credo tem servido como uma declaração fundamental e magistral da fé cristã ortodoxa desde então.

No entanto, tais questões sobre a pessoa de Cristo foram levantadas muito antes do tempo de Ário. A carta de Paulo aos Colossenses é um documento que fornece um instantâneo do estado do desenvolvimento teológico da nascente fé cristã que explodiu no cenário da história cerca de trinta anos antes na pessoa, ministério, crucificação e ressurreição de Jesus de Nazaré. Paulo escreve a carta para combater um falso ensino (uma “filosofia”, Colossenses 2:8) que denigre a pessoa de Cristo. Os detalhes do ensino errôneo estão perdidos para nós, mas Paulo compõe (ou insere) o hino ou poema de Colossenses 1:15-20 para combatê-lo e reafirmar a supremacia de Cristo.

Este hino, ou poema, divide-se em duas seções. A primeira exalta a preeminência do Filho sobre a criação (Colossenses 1:15-17), enquanto a segunda exalta sua preeminência sobre a nova criação inaugurada (Colossenses 1:18-20). O hino fornece a munição teológica necessária para abater e destruir o ensino errôneo sobre Cristo que estava ameaçando as igrejas incipientes em Colossos.

Colossenses 1:15 abre a primeira seção do poema. A chave para desvendar o significado da frase “primogênito de toda a criação” encontrada aqui não é apenas estudar a frase em si, mas observar o versículo imediatamente seguinte, Colossenses 1:16. O versículo 16 começa com a palavra “porque” (hoti em grego) e assim indica que Paulo está prestes a fornecer a razão pela qual Cristo é chamado de “o primogênito de toda a criação”. Ou seja, há uma relação lógica entre os versículos 15 e 16 que devemos compreender para entender a frase adequadamente. Muitos intérpretes (talvez incluindo Ário?) concentram-se excessivamente na frase em si, no versículo 15, e negligenciam seu contexto imediato mais amplo. No entanto, o contexto é rei e determinante para o significado. Vemos que Paulo afirma que Cristo é chamado de “primogênito de toda a criação” porque “porque nele foram criadas todas as coisas . . .  tudo foi criado por ele e para ele”. É por isso que o Filho recebe o título de “primogênito de toda a criação”. A frase, portanto, não se refere a um tempo em que Cristo não existiu, mas significa “sua primazia de posição, bem como sua preeminência temporal sobre tudo na ordem criada (isto é, sua preexistência; veja também Colossenses 1:17a ['E ele é antes de todas as coisas']).” [2] Salmos 89:27 usa a palavra de maneira semelhante para enfatizar que Deus designou Davi como seu filho “primogênito” em sua coroação, e o texto explica imediatamente o que isso significa: Davi tornou-se, portanto, “o mais elevado dos reis da terra” (cf. Salmos 2:6-7). O texto define o termo para nós. Mais uma vez, a primazia da posição está em vista no contexto, e a metáfora da geração serve a esse fim, com base na visão antiga e difundida de que o filho primogênito de uma família possuía grandes privilégios e posição sobre todos os outros irmãos (cf., por exemplo, Gênesis 48:17-19; 49:3-4). Além disso, em uma vista deslumbrante da glória divina, o apóstolo descreve o Filho como o agente preexistente da criação de Deus por meio de quem e para quem todas as coisas existem. O último modo de falar é reservado, em outras partes do Novo Testamento, somente para Deus (Romanos 11:36; 1 Coríntios 8:6; Hebreus 2:10). [3]

A lógica do texto, portanto, explica o que se entende por “primogênito de toda a criação”. A frase não tem nada a ver com “nascer” como um ser criado – certamente não de uma maneira especial e direta por Deus como um ato único de criação antes da Criação*, como afirmam as Testemunhas de Jeová (“As Escrituras identificam a Palavra [Jesus em seu existência pré-humana] como a primeira criação de Deus, seu Filho primogênito... A existência de Jesus como criatura espiritual começou milhares de milhões de anos antes da criação do primeiro ser humano”). [4] Colossenses 1:15-16 não suporta esta leitura.

Nosso breve estudo de Colossenses 1:15 mostra que é crucial que não apenas nos concentremos em palavras ou frases para entender as Escrituras, mas também devemos seguir especialmente o fluxo do argumento lógico do autor para entender o significado de qualquer palavra ou frase em seu contexto imediato. Não devemos sucumbir ao estudo de palavras como o princípio e o fim de tudo no estudo da Bíblia. Isso tem o seu lugar. Todavia, devemos garantir que nos tornamos leitores diligentes que desaceleram e leem verdadeiramente, a fim de seguir a linha de pensamento do autor. Se Arius realmente leu Colossenses 1:15 e o interpretou de acordo com sua interpretação herética, talvez se ele tivesse lido Colossenses 1:16 e tivesse percebido o “para” que começa o versículo, a história do movimento cristão poderia ter se desenvolvido de forma bem diferente.

Notas de fim:

  1. “Nicene Creed” (Credo Niceno), Christian Reformed Church, https://www.crcna.org/welcome/beliefs/creeds/nicene-creed. [Veja aqui em português]
  2. Christopher A. Beetham, Colossians and Philemon: A 12-Week Study, KTB Series (Wheaton, IL: Crossway, 2015), 29.
  3. Beetham, Colossenses e Filemom, 29.
  4. “Jesus Christ”, Insights on the Scriptures (Warwick, NY: Watch Tower Bible and Tract Society, 1988), 2:52 (disponível eletronicamente em www.jw.org/en/library/books/Insight-on-the-Scriptures/Jesus-Christ/).

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* N. do T.: A segunda aparição da palavra criação foi grafada com inicial maiúscula para evidenciar que o sentido aqui é o de "toda a criação de Deus" (relatada em Gênesis 1 e 2).



Etiquetas:
dúvida teológica bíblica, cristã, de interpretação da Bíblia, das Escrituras - defesa da fé - apologética - cristianismo


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