Criação ex nihilo: Teologia e Ciência


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Observações: O artigo aqui publicado é uma versão revisada da tradução já apresentada e disponível no site Reasonable Faith. Melhorias foram feitas na tradução, nas notações de números e na formatação das citações longas (colocando estas em destaque). Numerações foram acrescentadas aos tópicos e subtópicos. Notas de tradução foram adicionadas para ajudar na compreensão de algumas partes. Uma figura foi acrescentada com o intuito de tornar melhor a compreensão das explicações de Craig.


por William Lane Craig
agosto de 2020

RESUMO

A doutrina bíblica da criação temporal ex nihilo tem recebido forte confirmação científica da física pós-relativista. Duas linhas de provas apontam para um começo absoluto do universo: a expansão do universo e a termodinâmica do universo. Em cada caso, as tentativas de manter um universo eterno no passado se tornam cada vez mais difíceis de defender.

Dado o começo do universo, surge a questão a respeito da maneira como o universo poderia ter vindo à existência. As tentativas de alguns físicos, de sustentar que a física pode explicar a origem do universo a partir do nada, se valem do uso equivocado do termo “nada” ou, então, são culpados de um deslize filosófico. A criação sobrenatural ex nihilo é a melhor explicação.

1 Introdução

“No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1:1 ARC). Com majestosa simplicidade, o autor do capítulo de abertura de Gênesis diferenciou, assim, o seu ponto de vista, não apenas de antigos mitos de criação dos vizinhos de Israel, mas também, efetivamente, do panteísmo, conforme encontrado em religiões como o hinduísmo vedanta e o taoísmo, do panenteísmo, quer seja na sua vertente neoplatônica clássica, quer seja na teologia do processo no século XX, e do politeísmo, desde o paganismo antigo até o mormonismo contemporâneo. Os escritores bíblicos nos dão a entender que o universo teve começo temporal e, portanto, implicam creatio ex nihilo, no sentido temporal de que Deus trouxe à existência o universo, sem causa material, em algum momento no passado finito. [1]

Além disso, os Pais da Igreja, embora pesadamente influenciados pelo pensamento grego, fincaram o pé na doutrina da criação, insistindo vigorosamente na criação temporal do universo ex nihilo, em oposição à doutrina helenística prevalente da eternidade da matéria. [2] Uma tradição de argumentação robusta contra a eternidade passada do mundo e a favor da creatio ex nihilo, oriunda do teólogo cristão alexandrino João Filopono (m. 580?), continuou por séculos no pensamento islâmico, judaico e cristão. [3] Em 1215, a Igreja Católica promulgou a creatio ex nihilo temporal como doutrina oficial da igreja, no IV Concílio de Latrão, declarando que Deus é “o Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis... que, por Sua força onipotente, do começo do tempo criou as duas ordens da mesma forma, a partir do nada”. [4] Essa declaração notável não apenas afirma que Deus criou tudo além de dEle próprio, sem recorrer a nenhuma causa material, mas que até mesmo o tempo em si teve começo. A doutrina da criação está, portanto, inerentemente vinculada a considerações temporais e acarreta que Deus trouxe à existência o universo, em algum momento no passado, sem qualquer causa material antecedente ou contemporânea.

2 A Cosmologia Contemporânea e a Criação ex nihilo

Neste artigo, deixamos de lado as fascinantes questões filosóficas suscitadas pela doutrina da criação ex nihilo, que busquei abordar alhures [5], a fim de me concentrar na relevância da ciência contemporânea, em particular, da astrofísica e, mais especificamente ainda, da cosmogonia física, para a criação ex nihilo. Duas linhas de provas físicas independentes, mas estreitamente interrelacionadas, são relevantes à doutrina da criação ex nihilo: provas da expansão do universo e provas da termodinâmica do universo.

3 A Expansão do Universo

3.1 Física Pré-Relativista

Na física aristotélica, a matéria-prima, de que todas as substâncias físicas são compostas, é, como o próprio Deus, eterna e incriada. Ela subjaz ao processo eterno de geração e corrupção pelo qual passam as coisas no domínio sublunar. Em sua estrutura de larga escala, o universo permaneceu sem mudanças desde toda a eternidade.

Mesmo com a derrocada da física aristotélica na revolução científica completada por Isaac Newton, a pressuposição de um universo estático continuou incontestada. Embora o próprio Newton acreditasse que Deus criara o mundo, o universo descrito por sua física era, aparentemente, eterno. A suposição de que o universo nunca fora criado só foi corroborada ainda mais pela declaração de Hermann Helmholtz, no século XIX, das leis da conservação de matéria e energia. Uma vez que matéria e energia não podem nem ser criadas nem destruídas, deve sempre ter havido e sempre haverá um universo, isto é, o universo é temporalmente infinito no passado e no futuro.

De fato, já havia pistas na física pré-relativista — como o Paradoxo de Olbers de por que o céu noturno ser escuro, e não estar em chamas com a luz, se uma infinitude de estrelas existe desde a eternidade passada, ou como a Segunda Lei da Termodinâmica, que parecia implicar que o universo, se existe desde a eternidade, deve permanecer moribundo em estado de equilíbrio — de haver algo errado com a suposição prevalente de um cosmo eterno e estático. No entanto, tais preocupações persistentes não conseguiram derrubar o que, em todos os lugares, era tido por certo: o universo como um todo existe e existirá sem mudanças, para sempre.

3.2 A Revolução Causada pela Relatividade Geral

Tremores do terremoto iminente que demoliria a velha cosmologia foram sentidos, pela primeira vez, em 1917, quando Albert Einstein fez aplicação cosmológica da sua teoria gravitacional recém-descoberta, a Teoria Geral da Relatividade (doravante, RG). [6] Einstein pressupunha que o universo é homogêneo e isotrópico e que ele existe em estado estável, com densidade constante de massa média e curvatura constante do espaço. Para sua decepção, contudo, ele descobriu que a RG não permitiria tal modelo do universo, a menos que ele introduzisse nas suas equações do campo gravitacional certo “fator de correção” L, a fim de equilibrar o efeito gravitacional da matéria e, assim, garantir um universo estático. O universo estático de Einstein se equilibrava, entretanto, no fio da navalha, e a mínima perturbação — até mesmo o transporte da matéria de uma parte do universo para o outra — faria com que o universo implodisse ou expandisse. Ao levar a sério esse modelo de Einstein, o matemático russo Alexander Friedman e o astrônomo belga Georges Lemaître conseguiram formular, de maneira independente, na década de 1920, soluções para as equações do campo que prediziam um universo em expansão. [7]

A importância monumental do modelo de Friedman-Lemaître estava na sua historicização do universo. Conforme observou um comentarista, até àquele momento, a ideia da expansão do universo “estava, absolutamente, além da compreensão. Ao longo de toda a história humana, considerava-se que o universo fosse fixo e imutável, e a ideia de que talvez estivesse, de fato, em mudança era inconcebível”. [8] Porém, se o modelo de Friedman-Lemaître estivesse correto, o universo não podia mais ser tratado, adequadamente, como entidade estática existindo, com efeito, atemporalmente. Antes, o universo tem história, e o tempo não será questão indiferente para a nossa investigação do cosmos.

Em 1929, as medições que o astrônomo americano Edwin Hubble fez do desvio para o vermelho nos espectros ópticos da luz de galáxias distantes, [9] que foi entendido como se indicasse movimento de recuo universal das fontes de luz na linha de visão, forneceram uma verificação dramática do modelo de Friedman-Lemaître. O incrível é que o que Hubble descobrira foi a expansão do universo predita por Friedman e Lemaître com base na RG de Einstein. Foi um verdadeiro ponto de inflexão na história da ciência. “De todas as grandes predições que fez a ciência através dos séculos”, exclama John Wheeler, “será que houve alguma maior do que esta: prever, e prever corretamente, e prever contra todas as expectativas, um fenômeno tão fantástico quanto a expansão do universo?”. [10]

3.3 O Modelo Convencional do Big Bang

De acordo com o modelo de Friedman-Lemaître, à medida que o tempo passa, as distâncias separando as massas galácticas se tornam maiores. Importa entender que, como teoria baseada na RG, o modelo não descreve a expansão do conteúdo material do universo em espaço newtoniano pré-existente vazio, mas, sim, a expansão do próprio espaço. Concebem-se as partículas ideais do fluido cosmológico constituídas pela matéria e energia do universo como se estivessem em repouso em relação ao espaço, mas se afastassem progressivamente uma da outra, à medida que o próprio espaço se expanda ou estenda, assim como botões colados na superfície de um balão se afastariam um do outro à medida que o balão inflasse. Quando o universo se expande, ele se torna cada vez menos denso. Isto tem a implicação fabulosa de que, ao se reverter a expansão e extrapolar de volta no tempo, o universo se torna progressivamente mais denso até que se chegue a um estado de densidade infinita, em algum momento no passado finito. Este estado representa uma singularidade em que a curvatura do espaço-tempo, bem como temperatura, pressão e densidade, tornam-se infinitos. Ele constitui, portanto, um limite ou fronteira para o próprio espaço-tempo. P. C. W. Davies comenta o seguinte:

Se extrapolarmos essa predição ao seu extremo, atingiremos um ponto em que todas as distâncias no universo se encolheram a zero. Uma singularidade cosmológica inicial, portanto, forma uma extremidade temporal passada do universo. Não podemos continuar o raciocínio físico, ou mesmo o conceito de espaço-tempo, através de tal extremidade. Por essa razão, a maioria dos cosmólogos pensa na singularidade inicial como o começo do universo. Segundo essa visão, o big bang representa o evento da criação; a criação não só de toda a matéria e energia no universo, mas também do próprio espaço-tempo. [11]

O termo “Big Bang”, originalmente expressão depreciativa cunhada por Fred Hoyle para caracterizar o começo do universo predito pelo modelo de Friedman-Lemaître, tem, assim, o potencial de trazer deturpação, já que a expansão não pode ser visualizada a partir de fora (não havendo nenhum “fora”, assim como não há nenhum “antes” em relação ao Big Bang).

O modelo convencional do Big Bang, como veio a ser denominado o modelo de Friedman-Lemaître, descreve, assim, um universo que não é eterno no passado, mas veio a existir em algum momento do tempo finito passado. Além disso — e vale salientar este ponto —, a origem que ele postula é origem absoluta ex nihilo. Pois não só toda a matéria e energia, mas o próprio espaço e tempo, vieram a existir na singularidade cosmológica inicial. Conforme enfatizam John Barrow e Frank Tipler, “nessa singularidade, espaço e tempo vieram a existir; literalmente nada existia antes da singularidade, de modo que, se o universo se originou em tal singularidade, teríamos verdadeiramente uma criação ex nihilo”. [12] Segundo o modelo convencional, o universo se origina ex nihilo no sentido de que, na singularidade inicial, é verdadeiro que não há nenhum ponto anterior de espaço-tempo, ou é falso que algo existia antes da singularidade.

3.4 Modelos Sem Começo

Embora avanços na cosmologia astrofísica tenham forçado diversas revisões no modelo convencional, [13] nada tem posto em causa sua predição fundamental da finitude do passado e do começo do universo. De fato, conforme mostrou James Sinclair, a história da cosmogonia do século XX viu uma procissão de teorias fracassadas tentando evitar o começo absoluto predito pelo modelo convencional. [14] Mostrou-se, repetidas vezes, que estes modelos sem começo são fisicamente insustentáveis ou subentendem o próprio começo do universo que buscavam evitar. Nesse ínterim, uma série de notáveis teoremas de singularidade tem fechado cada vez mais o cerco em volta de modelos cosmogônicos empiricamente sustentáveis ao mostrar que, sob condições mais e mais generalizadas, um começo é inevitável. Em 2003, Arvind Borde, Alan Guth e Alexander Vilenkin conseguiram mostrar que {Isto é o teorema de Borde-Guth-Vilenkin} qualquer universo que, na média, esteja em estado de expansão cósmica através da sua história, não pode ser infinito no passado, mas deve ter um começo. [15] Em artigo no periódico virtual Inference, publicado no outono de 2015, Vilenkin corroborou tal conclusão: “Não temos modelos viáveis de universo eterno. O teorema de BGV dá razão para crer que tais modelos simplesmente não podem ser construídos”. [17]

O cosmólogo Sean Carroll, em esforço para subverter as implicações do teorema de BGV, citou recentemente observações feitas em privado por Alan Guth no sentido de que “não sei se o universo teve começo. Suspeito que o universo não teve começo. Ele é, muito provavelmente, eterno, mas ninguém sabe”. [18] Carroll pergunta corretamente: “Ora, como é que o autor do teorema de Borde-Guth-Vilenkin consegue dizer que o universo é, provavelmente, eterno?” [19] De maneira mais adequada, como é que um dos seus autores consegue dizer que o universo é, provavelmente, eterno e outro dizer que, provavelmente, não é? Carroll garantiu ao seu público que a razão é que “o teorema só trata de descrições clássicas do universo, e não do universo em si”. [20] Isso não explicaria, porém, como Vilenkin poderia estar tão desesperadamente enganado quanto às implicações do teorema. Agora, entretanto, lançou-se nova luz sobre as observações enigmáticas de Guth por meio de correspondência com o filósofo Daniel Came. [21] Ali, Guth revela favorecer modelos do universo que exibem a reversão da flecha do tempo em algum momento no passado e que suas observações a Carroll referiam-se a tais modelos. Estes não se enquadram no teorema de BGV, por não satisfazerem à única condição de tal teorema: o universo está, em média, em estado de expansão cósmica através da sua história. Assim, nem Guth nem Vilenkin se enganam quanto às implicações do teorema; antes, Guth só defende um modelo ao qual o teorema não se aplica. Infelizmente para quem espera um universo eterno no passado, como Guth e Carroll, tais modelos de reversão do tempo são extremamente antifísicos e, mesmo que exitosos, na realidade, não evitam o começo do universo, antes o subentendem. [22] Isso porque tal expansão revertida do tempo não está, de forma nenhuma, em nosso passado, mas representa um universo compartilhando do mesmo ponto inicial, com a diferença de estar se expandindo em outra direção (Figura 1). Vilenkin já considerara tais modelos em suas discussões anteriores, rejeitando-os. É por isso que disse: “todos os indícios que temos dizem que o universo teve um começo”. [23]


Dois universos compartilhando o mesmo ponto inicial (Imagem de Lexica - https://lexica.art)
Figura 1: Ilustração da explicação de Craig para dois universos compartilhando o mesmo ponto inicial
(Imagem editada a partir da original disponível em Lexica)


O teorema de Borde-Guth-Vilenkin prova que o espaço-tempo clássico, sob uma única condição muito geral, não pode ser estendido à infinitude passada, mas deve atingir um limite, em algum momento no passado finito. Ora, ou havia algo no outro lado de tal limite ou não. Se não havia, tal limite é o começo do universo. Se havia algo no outro lado, será região não-clássica descrita pela teoria da gravidade quântica ainda a ser descoberta. No caso, diz Vilenkin, isso será o começo do universo. [24]

Considere o seguinte: se existe uma região não-clássica dessas, ela não é eterna no passado, no sentido clássico. Porém, ela tampouco parece existir atemporalmente, no sentido literal, de modo análogo ao que os filósofos consideram objetos abstratos como atemporais ou teólogos entendem ser Deus atemporal. Isso porque ela, supostamente, existiu antes da era clássica, e a era clássica, supostamente, emergiu dela, o que parece postular uma relação temporal entre a era da gravidade quântica e a era clássica. [25] Em todo caso, tal estado quântico não é estável e, portanto, ou produziria o universo desde a eternidade passada ou não o faria, de forma alguma. Conforme argumentam Anthony Aguirre e John Kehayias,

É muito difícil elaborar um sistema — especialmente um sistema quântico — que não faça nada “para sempre” e, então, evolua. Um estado quântico verdadeiramente estacionário ou periódico, que duraria para sempre, jamais evoluiria, ao passo que um estado com qualquer instabilidade não durará por tempo indefinito. [26]

Portanto, a era da gravidade quântica em si teria de ter tido um começo a fim de explicar por que fez transição para o tempo e espaço clássicos apenas uns 14 bilhões de anos atrás. Assim, quer seja no limite, quer seja no regime da gravidade quântica, o universo começou a existir.

4 A Termodinâmica do Universo

Como se não bastasse, há uma segunda linha de provas científicas para o começo do universo baseada nas leis da termodinâmica. De acordo com a Segunda Lei da Termodinâmica, processos que ocorrem em sistema fechado sempre tendem a um estado de equilíbrio. Ora, o nosso interesse na lei é o que acontece quando ela é aplicada ao universo como um todo. O universo é, segundo a visão naturalista, um gigante sistema fechado, uma vez que ele é tudo que existe, e não há nada fora dele. O que isto parece implicar, então, é que, dado tempo suficiente, o universo e todos os seus processos se esgotarão, e o universo inteiro chegará a um equilíbrio. Isto é conhecido como a morte térmica do universo. Uma vez que o universo alcance este estado, nenhuma mudança a mais será possível. O universo estará morto.

Pois bem, a questão que esta implicação da Segunda Lei inevitavelmente nos impõe é a seguinte: Se, dado tempo suficiente, o universo atingirá a morte térmica, por que ele não está em morte térmica agora, se ele existe desde a eternidade? Se o universo não começou a existir, ele deveria agora estar em estado de equilíbrio. Como uma bomba-relógio, já deveria ter-se esgotado. Uma vez que ainda não se esgotou, a implicação é que, nas palavras de um cientista perplexo, “de alguma maneira, o universo deveria ter sido liquidado”. [27]

4.1 Física Pré-Relativista

Conforme mencionado anteriormente, os físicos do século XIX já tinham ciência deste dilema. O cientista alemão Ludwig Boltzmann ofereceu proposta ousada a fim de explicar por que não encontramos o universo em estado de “morte térmica” ou equilíbrio dinâmico. [28] Boltzmann lançou a hipótese de que o universo como um todo, de fato, existe, em estado de equilíbrio, mas, com o passar do tempo, flutuações no nível de energia ocorrem aqui e ali por todo o universo, de modo que, pelo simples acaso, haverá regiões isoladas onde existe desequilíbrio. Boltzmann referiu-se a essas regiões isoladas como “mundos”. Não deveríamos ficar surpresos em ver o nosso mundo em estado de desequilíbrio extremamente improvável, defendeu ele, uma vez que, no conjunto de todos os mundos, deve existir, por simples acaso, certos mundos em desequilíbrio, e o nosso justamente aconteceu de ser um deles.

O problema com a ousada Hipótese dos Muitos Mundos de Boltzmann é que, se o nosso mundo fosse meramente flutuação num mar de energia difusa, há maior preponderância da probabilidade de que deveríamos estar observando uma região muito mais minúscula de desequilíbrio do que fazemos agora. A fim de que existamos, uma flutuação menor, mesmo a que produziu o nosso mundo instantaneamente por um enorme acidente, é inestimavelmente mais provável do que um declínio progressivo na entropia ao longo de 14 bilhões de anos para formar o mundo que vemos. De fato, a hipótese de Boltzmann, se adotada, nos forçaria a considerar ilusório o passado, tendo tudo a mera aparência de idade, e ilusórias as estrelas e planetas, meras “imagens”, por assim dizer, uma vez que esse tipo de mundo é enormemente mais provável, dado o estado de equilíbrio geral, do que um mundo com eventos genuínos, temporal e espacialmente distantes. Portanto, a Hipótese do Multiverso de Boltzmann foi rejeitada universalmente pela comunidade científica, e costuma-se entender o desequilíbrio presente como justamente resultado da condição inicial de baixa entropia ocorrendo misteriosamente no começo do universo.

4.2 Física Relativista Geral

Hoje, a escatologia não é mais apenas um ramo da teologia; antes, ela se tornou um campo da cosmologia. Como a cosmogonia estuda a origem do universo, assim também a escatologia física estuda o seu fim. Na escatologia cosmológica contemporânea, há dois tipos possíveis de morte térmica para o universo. Se o universo, em algum momento, recontrair-se, ele sofrerá uma morte “aquecida”. Beatrice Tinsley descreve tal estado:

Se a densidade média da matéria no universo for grande o suficiente, a atração gravitacional mútua entre os corpos, em algum momento, retardará a expansão até à paralisação. O universo, então, contrairá e entrará em colapso numa bola de fogo aquecida. Não há nenhum mecanismo físico conhecido que possa reverter tal grande crise catastrófica. Aparentemente, se o universo se tornar denso o bastante, estará rumo a uma morte aquecida. [29]

Se o universo está fadado à recontração, quer dizer que, à medida que ele se contrai, as estrelas ganham energia, levando-as a queimar mais rapidamente, até que elas venham a explodir ou evaporar. Como tudo no universo fica cada vez mais próximo, os buracos negros começam a tragar tudo ao seu redor e, em algum momento, eles próprios começam a coalescer. Com o tempo, “todos os buracos negros, enfim, coalescem em um grande buraco negro coextensivo com o universo”, [30] algo do que o universo jamais ressurgirá.

Suponha, porém, como é mais provável, que o universo expandirá para sempre. Tinsley descreve o destino de tal universo:

Se o universo tiver baixa densidade, a sua morte será fria. Ele expandirá para sempre, em velocidade cada vez mais lenta. As galáxias transformarão todo o seu gás em estrelas, e as estrelas se esgotarão. O nosso próprio sol passará a ser um remanescente frio e morto a vagar entre os cadáveres de outras estrelas, numa Via Láctea cada vez mais isolada. [31]

Em 1030 anos, o universo consistirá em 90% de estrelas mortas, 9% de buracos negros colossais formados pelo colapso de galáxias, e 1% de matéria atômica, principalmente hidrogênio. A física de partículas elementares sugere que, dali em diante, os prótons decairão em elétrons e pósitrons, de modo que o espaço se preencherá com gás rarefeito tão fino que a distância entre um elétron e um pósitron será, aproximadamente, do tamanho da nossa galáxia. Em 10100 anos, alguns cientistas acreditam que os próprios buracos negros se dissiparão com um estranho efeito predito pela mecânica quântica. A massa e energia associadas a um buraco negro distorcem o espaço de tal maneira que, segundo se diz, elas criam um “túnel” ou “buraco de minhoca” através do qual a massa e a energia são expulsas para outra região do espaço. À proporção que a massa de um buraco negro diminui, a sua perda de energia acelera, de modo que, em algum momento, ela é dissipada em radiação e partículas elementares. Em algum momento, todos os buracos negros evaporarão completamente, e toda a matéria, no universo em expansão constante, será reduzida a um fino gás de partículas elementares e radiação. Visto que o volume de espaço aumenta constantemente, o universo jamais chegará, de fato, ao equilíbrio, pois há sempre mais espaço para a produção de entropia. Não obstante, o universo ficará cada vez mais frio, escuro, diluído e morto.

Descobertas recentes fornecem fortes provas de que existe, efetivamente, uma constante cosmológica positiva que faz com que a expansão cósmica acelere, ao invés de desacelerar. Paradoxalmente, uma vez que o volume de espaço aumente em ritmo exponencial, dando ainda mais espaço para mais produção de entropia, o universo, na verdade, cresce cada vez mais se distanciando do estado de equilíbrio, à medida que o tempo passa. Porém, a aceleração somente apressa a desintegração do cosmo em fragmentos materiais cada vez mais isolados, não mais conectados do ponto de vista causal com remanescentes igualmente ilhados do universo em expansão. Cada um desses fragmentos enfrenta, por sua vez, a extinção termodinâmica. Portanto, o futuro sombrio predito a partir da Segunda Lei permanece fundamentalmente inalterado.

Assim, a mesma questão saliente feita pela física clássica persiste: por que, se o universo existe eternamente, ele não está agora em estado frio, escuro, diluído e sem vida? Em contraste com os seus predecessores do século XIX, os físicos contemporâneos passaram a questionar a suposição implícita de que o universo é eterno no passado. Davies, especialista na física de processos temporalmente assimétricos, relata:

Atualmente, poucos cosmólogos duvidam que o universo, ao menos como o conhecemos, teve, de fato, origem em momento finito no passado. A alternativa — que o universo sempre existiu de uma forma ou de outra — confronta-se com um paradoxo bastante básico. O sol e as estrelas não podem continuar a queimar para sempre: mais cedo ou mais tarde, ficarão sem combustível e morrerão.

O mesmo se aplica a todos os processos físicos irreversíveis; o estoque de energia disponível no universo para conduzi-los é finito e não pode durar pela eternidade. Trata-se de exemplo da chamada Segunda Lei da Termodinâmica que, aplicada ao universo inteiro, prediz que ele está preso em ladeira de via única de degeneração e degradação, rumo a um estado final de entropia máxima ou desordem. Como este estado final ainda não foi atingido, segue-se que o universo não pode ter existido por tempo infinito. [32]

Davies conclui: “O universo não pode ter existido para sempre. Sabemos que deve ter havido um começo absoluto, algum tempo finito atrás”.

4.3 Cenários de Multiverso

A teoria inflacionária tem sido instrumentalizada por alguns teóricos na busca por reavivar a explicação de Boltzmann de o porquê nos encontrarmos num universo termodinamicamente capaz de sustentar observadores. De acordo com a teoria inflacionária genérica, o nosso universo existe em estado de vácuo verdadeiro, com densidade de energia próxima a zero, porém, anteriormente, ele existia em estado de vácuo falso, com altíssima densidade de energia. Se lançarmos a hipótese de que as condições a determinarem a densidade de energia e a evolução do estado falso de vácuo estão bem certas, o vácuo falso expandirá tão rapidamente que, ao decair em bolhas do vácuo verdadeiro, os “universos em bolha” formados nesse mar de vácuo falso, embora eles mesmos expandam em velocidades enormes, não conseguirão acompanhar a expansão do vácuo falso e, assim, cada vez mais se encontrarão separados com o passar do tempo.

Além disso, cada bolha se subdivide em domínios limitados por horizontes de eventos, com cada domínio a constituir um universo observável. Observadores internos a tal universo o observarão aberto e infinito, embora, externamente, o universo em bolha seja finito e geometricamente fechado. Apesar do fato de ser o multiverso em si finito e geometricamente fechado, o vácuo falso continuará, segundo a teoria, a expandir-se para sempre. Novas bolhas de vácuo verdadeiro continuarão a formar-se nas lacunas entre os universos em bolha e passarão, elas mesmas, a ser mundos isolados. A questão, então, nas palavras de Dyson, Kleban e Susskind, é “se o universo pode ser flutuação ocorrendo naturalmente, ou será que ele se deve a um agente externo que começa o sistema em estado específico de baixa entropia?” [33]

A solução proposta para o problema é, essencialmente, a mesma de Boltzmann. Entre a infinitude de mundos gerados pela inflação, haverá alguns mundos em estado de desequilíbrio termodinâmico, e apenas tais mundos podem suportar observadores. Não é, portanto, nenhuma surpresa que encontremos o mundo em estado de desequilíbrio, uma vez que é o único tipo de mundo que poderíamos observar.

No entanto, a solução proposta se vê assolada pela mesma falha da hipótese de Boltzmann. Em multiverso de vácuos em eterna inflação, a maior parte do volume será ocupada pela alta entropia, estados desordenados incapazes de suportar observadores. Há dois modos em que estados observáveis podem existir: primeiro, ao ser parte de um mundo de baixa entropia e relativamente jovem; ou, segundo, ao ser flutuação termal em mundo de alta entropia. Embora universos jovens constantemente se nucleiem a partir do vácuo falso, os seus volumes serão pequenos em comparação com as bolhas mais velhas. Estados desordenados terão, portanto, em média, forte predominância. Isto implica que observadores têm muito mais probabilidade de serem o resultado de flutuações termais do que o resultado de condições de baixa entropia jovens.

Porém, no caso, surge mais uma vez a objeção de que é incompreensivelmente mais provável que uma região muito menor de desequilíbrio viesse a surgir mediante flutuação do que uma região tão grande quanto o nosso universo observável. Roger Penrose calcula que as chances do surgimento da condição de baixa entropia inicial do nosso universo estão na ordem de uma parte em 1010(123). [34] Ele comenta: “Não posso sequer me lembrar de ter visto algo mais na física cuja precisão conhecida se aproxime, mesmo remotamente, de um número como uma parte em 1010(123)”. [35] Em comparação, as chances de que o nosso sistema solar seja formado instantaneamente por colisões aleatórias de partículas são de, aproximadamente, 1:1010(60), um número enorme, mas inconcebivelmente menor do que 1010(123). (Penrose o chama de “titica de galinha”, em comparação. [36]) Assim, no multiverso de mundos, estados observáveis que envolvem tal condição inicial de baixa entropia serão fração incompreensivelmente minúscula de todos os estados observáveis que existem. Se formos apenas um membro aleatório do conjunto de mundos, deveríamos, pois, estar observando um fragmento menor de ordem.

Nota do Revisor da Tradução: Representações numéricas do tipo AB(C), significam que A é elevado ao expoente B, e B, por sua vez, é elevado ao expoente C.

Adotar a hipótese do multiverso para explicar nossas observações ordenadas resultaria, assim, mais uma vez, em uma estranha espécie de ilusionismo. Seria avassaladoramente provável que não haja aí um vasto universo ordeiro, a despeito das nossas observações; tudo se trata de ilusão. De fato, o estado mais provável que seja adequado para suportar as nossas observações ordenadas é um “universo” ainda menor que consiste em um único cérebro aparecendo a partir da desordem mediante flutuação termal. Com toda probabilidade, então, só você existe, e até mesmo o seu corpo físico é ilusório! Alguns cosmólogos, em linguagem melodramática reminiscente de filmes de terror de quinta categoria da década de 1950, denominaram este problema de “a invasão dos cérebros de Boltzmann”. [37] Os cérebros de Boltzmann são muito mais abundantes no conjunto de universos do que observadores comuns, e, portanto, cada um de nós deve pensar ser um cérebro de Boltzmann, caso creia que o universo não é nada além de um membro de um conjunto de mundos. Já que isto parece loucura, tal fato traz forte reprovação à hipótese de haver um multiverso velho o suficiente e grande o suficiente para ter evoluído o volume suficiente a fim de explicar a aparição por acaso da nossa condição de baixa entropia. Estes e outros problemas tornam a solução do multiverso menos plausível do que a solução convencional de que o universo começou a existir sem uma condição inicial de entropia baixa.

4.4 Cosmologia Quântica

Aqueles que preferem um universo sem começo talvez esperem que a cosmologia quântica sirva para evitar as implicações da Segunda Lei da Termodinâmica. Porém, agora, um novo teorema de singularidade formulado por Aron Wall parece fechar a porta a tal possibilidade. Wall mostra que, dada a validade da Segunda Lei generalizada da Termodinâmica na cosmologia quântica, o universo deve ter começado a existir, a menos que, com Guth, postule-se uma reversão da flecha do tempo, em algum momento no passado, o que, conforme Wall observa corretamente, envolve um começo termodinâmico no tempo que “pareceria suscitar as mesmas questões filosóficas que qualquer tipo de começo no tempo o faria”. [38] Wall relata que os seus resultados exigem apenas certos conceitos básicos, de modo que “é razoável crer que os resultados se sustentarão numa teoria completa de gravidade quântica”. [39]

Assim sendo, temos bons indícios, advindos tanto da expansão do universo quanto da Segunda Lei da Termodinâmica, de que o universo não é eterno no passado, mas teve começo temporal.

5 Criação ex nihilo

Davies postula a questão inevitável:

“O que causou o big bang?” (...) Pode-se considerar alguma força sobrenatural, alguma agência além do espaço e tempo, o responsável pelo big bang, ou pode-se preferir tomar o big bang como evento sem causa. Parece-me que não temos muita opção. Ou (...) algo fora do mundo físico (…) ou (…) um evento sem uma causa. [40]

Pode parecer metafisicamente absurdo que o universo viesse à existência sem uma causa e, portanto, uma agência sobrenatural deve ser preferida. Contudo, alguns cientistas defendem que a física quântica consegue explicar a origem do universo a partir do nada.

5.1 “Nada”

Infelizmente, alguns desses cientistas têm uma compreensão escandalosamente ingênua da linguagem. A palavra “nada” é termo de negação universal. Significa “não-algo”. Assim, por exemplo, se eu disse: “Não comi nada no almoço hoje”, quero dizer: “Não comi coisa alguma no almoço hoje”. Se lermos um relato da Segunda Guerra Mundial em que se diz que “nada parou o avanço alemão de varrer a Bélgica”, quer dizer que o avanço alemão não foi parado por coisa alguma. Se um teólogo diz que Deus criou o universo a partir do nada, ele quer dizer que a criação de Deus do universo não foi a partir de algo. Repetindo: a palavra “nada” é, simplesmente, um termo de negação universal, significando “não-algo”.

Existe toda uma série de palavras semelhantes de negação universal no português: “ninguém” significa “não-alguém”. “Nenhum” significa “nem uma coisa/pessoa”, e assim por diante.

Ora, como a palavra “nada” é, gramaticalmente, um pronome, podemos usá-la como sujeito ou objeto direto de uma oração. Ao entendermos essas palavras, não como termos de negação universal, mas como palavras referentes a algo, podemos gerar todo tipo de situações engraçadas. Se você disser: “Não vi ninguém no salão”, o sabichão responderá: “Sim, esse ninguém anda passando bastante tempo ali, ultimamente”. Se você disser: “Não comi nada no almoço hoje”, ele dirá: “Sério? E esse nada estava gostoso?”.

Esses jogos de palavras são tão velhos quanto a própria literatura. Na Odisseia de Homero, Odisseu se apresenta ao Ciclope como “ninguém”. Certa noite, Odisseu arranca o olho do ciclope. Os outros ciclopes o ouvem gritar e lhe exclamam: “Qual é o problema com você, fazendo tanto barulho que não conseguimos dormir?” O Ciclope responde: “Ninguém está me matando! Ninguém está me matando!”. Eles replicam: “Se ninguém o está atacando, você deve estar doente, e não há nada que possamos fazer!”. Na versão da história segundo Eurípides, ele compõe uma espécie de apresentação humorística ao estilo de Abbott e Costello em “Who’s on first?”:

“Por que você está gritando, Ciclope?”
“Ninguém acabou comigo!”
“Então, não há ninguém a feri-lo, afinal.”
“Ninguém está me cegando!”
“Então, você não está cego.”
“Tão cego quanto você!”
“Como é que ninguém o cegou?”
“Você está zombando de mim! Mas onde está Ninguém?”
“Em nenhum lugar, Ciclope!”

O uso dessas palavras de negação como “nada”, “ninguém” e “nem um” como substantivos, em referência a algo, trata-se de uma piada.

Que espantoso, então, ver que alguns físicos cuja língua materna é inglês usam esses termos precisamente como substantivos de referência. Lawrence Krauss, por exemplo, disse-nos sem perder a compostura que:

“Há uma variedade de formas de nada, [e] todas elas têm definições físicas.”
“As leis da mecânica quântica nos dizem que nada é instável.”
“70% da matéria dominante no universo é nada.”
“Não há nada ali, mas ele tem energia.”
“Nada pesa algo.”
“Nada é quase tudo.” [41]

Todas estas afirmações tomam a palavra “nada” como termo substantivo em referência a algo — por exemplo, o vácuo quântico ou campos quânticos. Eles são realidades físicas e, portanto, claramente algo. Chamar essas realidades de nada é, na melhor das hipóteses, equivocado, garantindo a confusão aos leigos, e, na pior das hipóteses, uma falsa representação deliberada da ciência. Tais afirmações nem sequer começam a abordar, muito menos responder, à questão de por que existir o universo, em vez de nada.

Em sua resenha do livro de Krauss, Um Universo que Veio do Nada, David Albert, destacado filósofo da física quântica, explica, com relação ao primeiro tipo de nada de Krauss, que:

estados de vácuo são arranjos específicos de matéria física elementar (...) o fato de alguns arranjos de campos acontecerem de corresponder com a existência de partículas e alguns não, não é nem um pouco mais misterioso do que o fato de alguns arranjos possíveis dos meus dedos acontecerem de corresponder à existência de um punho e alguns não. E o fato de que partículas possam aparecer e desaparecer da existência, ao longo do tempo, à medida que esses campos se rearranjam, não é nem um pouco mais misterioso do que o fato de que punhos possam aparecer e desaparecer da existência, ao longo do tempo, à medida que os meus dedos se rearranjem. E nenhuma dessas aparições (...) equivale a algo nem remotamente próximo de uma criação a partir do nada...
[42]

Ele conclui: “Krauss está completamente errado, e os seus críticos religiosos e filosóficos estão absolutamente corretos”.

5.2 Vir à Existência a Partir do Nada

Alexander Vilenkin tem uma proposta diferente quanto ao modo em que o universo pôde vir a ser a partir, literalmente, do nada. Em resposta à afirmação de uma agência sobrenatural, diz ele:

Em relação ao teorema de BGV e à sua relação com Deus, penso que o teorema implique a existência de um estado bastante especial no limite passado do espaço-tempo clássico. Demanda-se algum mecanismo para impor este estado. Craig quer que esse mecanismo seja Deus, mas penso que a cosmologia quântica funcionaria igualmente bem. [43]

O que exatamente Vilenkin tem em mente? No seu artigo para o periódico Inference, ele explica:

A física moderna pode descrever a emergência do universo como processo físico que não demanda uma causa. Nada pode ser criado a partir do nada, diz Lucrécio, e isso só porque a conservação de energia impossibilita que se crie nada [sic; talvez: “algo”] a partir do nada…

Existe uma brecha neste raciocínio. A energia do campo gravitacional é negativa; é concebível que essa energia negativa compensasse a energia positiva da matéria, fazendo a energia total do cosmo igual a zero. De fato, é precisamente o que acontece em universo fechado, em que o espaço se fecha em si mesmo, como a superfície de uma esfera. Segue das leis da relatividade geral que a energia total de tal universo é, necessariamente, igual a zero…

Se todos os números conservados de um universo fechado forem iguais a zero, não haverá nada para evitar que tal universo seja criado espontaneamente a partir do nada. E, de acordo com a mecânica quântica, qualquer processo que não seja estritamente proibido pelas leis da conservação acontecerá com alguma probabilidade…

O que causa o surgimento do universo a partir do nada? Nenhuma causa é necessária. [44]

Penso que se trate de um argumento terrível. Aceita a suposição de que a energia positiva associada com a matéria seja exatamente equilibrada pela energia negativa associada com a gravidade, de modo que, no balanço geral, a energia é zero. A manobra central vem com a afirmação de que, em tal caso, “não há nada para evitar que tal universo seja criado espontaneamente a partir do nada”. Ora, essa afirmação se trata de trivialidade. Necessariamente, se não há nada, não há nada para evitar que o universo venha a existir. Pelo mesmo princípio, se não há nada, não há nada para permitir que o universo venha a existir. Se houvesse qualquer coisa para evitar ou permitir que o universo viesse à existência, haveria algo, e não nada. Se não há nada, não há nada, e ponto final.

A ausência de algo para evitar que o universo venha à existência não implica a possibilidade metafísica de que o universo venha a existir a partir do nada. A título ilustrativo, se não houvesse nada, não haveria nada para evitar que Deus viesse à existência sem uma causa, mas isto não acarreta que tal coisa seja metafisicamente possível. É metafisicamente impossível que Deus venha à existência sem uma causa, mesmo que não houvesse nada para evitar isso, pois nada existia.

Vilenkin, no entanto, infere que “nenhuma causa é necessária” para que o universo venha a existir, pois as leis da conservação não o evitariam e, “de acordo com a mecânica quântica, qualquer processo que não seja estritamente proibido pelas leis da conservação acontecerá”. O argumento assume que, se não houvesse nada, tanto as leis da conservação quanto as leis da física quântica ainda se sustentariam. Isto está longe da obviedade, porém, uma vez que, na ausência absoluta de qualquer coisa, não fica claro que as leis a regerem o nosso universo se sustentassem. Em todo caso, por que pensar que, dadas as leis da mecânica quântica, qualquer coisa que não seja estritamente proibida pelas leis da conservação acontecerá? As leis da conservação não proíbem estritamente que Deus envie todos para o céu, mas isto dificilmente dá motivo para o otimismo. Tampouco elas proíbem que ele envie todos para o inferno, e nesse caso os dois resultados ocorrerão, o que é logicamente impossível, por serem generalizações universais contrárias do ponto de vista lógico. Pode-se fazer o argumento ateologicamente também: as leis da conservação não proíbem estritamente que algo venha à existência. É logicamente absurdo pensar que, por algo não ser proibido pelas leis da conservação, tal coisa acontecerá.

Por fim, é difícil levar a sério a inferência de Vilenkin de que, porque as energias positivas e negativas no universo resultam em zero, não se faz necessária nenhuma causa para que o universo tenha vindo a existir. Isto é como dizer que, se as suas dívidas equilibram os seus bens, o seu patrimônio líquido é zero e, portanto, não há nenhuma causa da sua situação financeira! Vilenkin, espero eu, não concordaria com Peter Atkins que, porque a energia positiva e a energia negativa do universo resultam em zero, nada existe agora e, portanto, “nada, de fato, veio do nada”. [45] Isso porque, como nos ensinou Descartes, eu, pelo menos, inegavelmente existo, e, portanto, algo existe. Christopher Isham, o mais importante cosmólogo quântico britânico, indica corretamente que ainda é necessário haver “semeadura ôntica” para criar a energia positiva e negativa, para começo de conversa, mesmo que, no balanço geral, a soma seja nula. [46] Mesmo que se concedesse a ausência de uma causa material do universo, a necessidade de uma causa eficiente é patente.

6 Conclusão

Temos, portanto, duas linhas independentes de provas científicas favoráveis ao começo do universo. Primeiramente, a expansão do universo implica que ele teve um começo. Em segundo lugar, a termodinâmica mostra que o universo começou a existir. Visto que essas linhas de provas são independentes e se reforçam mutuamente, a confirmação que oferecem para um começo do universo é mais forte ainda. Obviamente, como com todos os resultados científicos, as provas são provisórias. Conforme nos relembra Sean Carroll,

A ciência não tem a tarefa de provar coisas. Antes, a ciência julga os méritos de modelos rivais em relação à sua simplicidade, clareza, abrangência e compatibilidade com os dados. Teorias malsucedidas jamais são refutadas, pois podemos sempre inventar tramas elaboradas para salvar os fenômenos; elas apenas desaparecem à medida que teorias melhores ganham aceitação. [47]

A ciência não nos pode forçar a aceitar o começo do universo: pode-se sempre inventar tramas elaboradas para descartar as provas. Porém, tais tramas não têm se dado bem em exibir as virtudes científicas supramencionadas.

Dada a impossibilidade metafísica de que o universo tenha vindo à existência a partir do nada, a crença num Criador sobrenatural é eminentemente racional. No mínimo dos mínimos, podemos dizer com segurança que alguém que crê na doutrina de creatio ex nihilo não se verá contradito pelas provas empíricas da cosmologia contemporânea; pelo contrário, ele se achará plenamente alinhado com ela.

Notas de Fim

  1. Ver os capítulos 1-2 de Paul Copan e William Lane Craig, Creation out of Nothing: A Biblical, Philosophical, and Scientific Exploration (Grand Rapids, Mich.: Baker Bookhouse, 2004).
  2. Ver, novamente, Copan e Craig, Creation out of Nothing, cap. 3.
  3. Ver William Lane Craig, The Kalām Cosmological Argument (Londres: Macmillan & Co., 1979).
  4. “creator omnium invisibilium et visibilium, spiritualium et corporalium, qui sua omnipotenti virtute simul ab initio temporis, utramque de nihilo conditit creaturam, spiritualem et corporalem” (Concilium Lateranense IV, Consitutiones 1. De fide catholica).
  5. Ver, ainda mais uma vez, Copan e Craig, Creation out of Nothing, caps. 4-6.
  6. A. Einstein, “Cosmological Considerations on the General Theory of Relativity”, in The Principle of relativity, de A. Einstein et. al., com Notas de A. Sommerfeld, trad. W. Perrett e J. B. Jefferey (ed. rev.: New York: Dover Publications, 1952), 177-188.
  7. A. Friedman, “Über die Krümmung des Raumes”, Zeitschrift für Physik 10 (1922): 377-386; G. Lemaître, “Un univers homogène de masse constante et de rayon croissant, rendant compte de la vitesse radiale des nébuleuses extragalactiques”, Annales de la Société scientifique de Bruxelles 47 (1927): 49-59.
  8. Gregory L. Naber, Spacetime and Singularities: An Introduction (Cambridge: Cambridge University Press, 1988), 126-127.
  9. E. Hubble, “A Relation between Distance and Radial Velocity among Extra-galactic Nebulae”, Proceedings of the National Academy of Sciences 15 (1929): 168-173.
  10. John A. Wheeler, “Beyond the Hole”, in Some Strangeness in the Proportion, ed. Harry Woolf (Reading, Mass.: Addison-Wesley, 1980), 354.
  11. P. C. W. Davies, “Spacetime Singularities in Cosmology”, in The Study of Time III, ed. J. T. Fraser (New York: Springer Verlag, 1978), 78-79.
  12. John Barrow e Frank Tipler, The Anthropic Cosmological Principle (Oxford: Clarendon Press, 1986), 442.
  13. Principalmente o acréscimo de uma era inflacionária inicial e uma expansão em aceleração.
  14. William Lane Craig e James Sinclair, “The Kalam Cosmological Argument”, in The Blackwell Companion to Natural Theology, ed. W. L. Craig e J. P. Moreland (Oxford: Wiley-Blackwell, 2009), pp. 101-201; idem, “On Non-Singular Spacetimes and the Beginning of the Universe”, in Scientific Approaches to the Philosophy of Religion, ed. Yujin Nagasawa, Palgrave Frontiers in Philosophy of Religion (Londres: Macmillan, 2012), pp. 95-142.
  15. A. Borde, A. Guth e A. Vilenkin, “Inflationary Spacetimes Are Incomplete in Past Directions”, Physical Review Letters 90 (2003): 151301, http://arxiv.org/abs/gr-qc/0110012.
  16. Alexander Vilenkin, “Did the universe have a beginning?” http://www.youtube.com/watch?v=NXCQelhKJ7A. Cf. Audrey Mithani e Alexander Vilenkin, “Did the universe have a beginning?”, arXiv:1204.4658v1 [hep-th] 20 abr 2012, p. 1, onde afirmam: “Nenhum destes cenários pode, de fato, ser eterno no passado”.
  17. Alexander Vilenkin, “The Beginning of the Universe”, Inference: International Review of Science 1/ 4 (23 out 2015), http://inference-review.com/article/the-beginning-of-the-universe.
  18. Robert Stewart, ed., God and Cosmology: William Lane Craig and Sean Carroll in Dialogue (Minneapolis: Fortress Press, 2016), p. 70. O Fórum Greer-Heard em si ocorreu em 2014.
  19. Ibid.
  20. Ibid.
  21. Alan Guth para Daniel Came, 19 mar 2017, citado por Came em nosso debate “Does God Exist?”, Trinity College, Dublin, 23 mar 2017, disponível em https://www.facebook.com/reasonablefaithorg/videos/10154698973823229/.
  22. Ver Alexander Vilenkin, “Arrows of time and the beginning of the universe”, arXiv:1305.3836v2 [hep-th] 29 mai 2013; ver também Craig and Sinclair, “The Kalām Cosmological Argument”, p. 157.
  23. A. Vilenkin, citado em “Why physicists can’t avoid a creation event”, por Lisa Grossman, New Scientist (11 jan 2012).
  24. “Se, de fato, toda a geodésia direcionada para o passado topa com uma região de espaço-tempo quântico onde não se aplicam mais as noções de tempo e causalidade, eu caracterizaria tal região como o começo do universo” (A. Vilenkin para William Lane Craig, correspondência pessoal, 8 dez 2013).
  25. Christopher Isham observa que, embora as cosmogonias quânticas “difiram nos seus detalhes, todas elas concordam com a ideia de que espaço e tempo emergem, de algum modo, a partir de uma região puramente quanto-mecânica que pode ser descrita, em alguns sentidos, como se fosse um clássico espaço quádruplo com tempo imaginário” (C. J. Isham, “Quantum Theories of the Creation of the Universe”, in Quantum Cosmology and the Laws of Nature, 2. ed., ed. Robert J. Russell et al. [Vaticano: Vatican Observatory, 1996], p. 75). Essa característica da cosmogonia quântica é muito problemática, uma vez que a emergência diacrônica do tempo é, evidentemente, incoerente (J. Butterfield e C. J. Isham, “On the Emergence of Time in Quantum Gravity”, in The Arguments of Time, ed. J. Butterfield [Oxford University Press, 1999], pp. 111-168; Vincent Lam e Michael Esfeld, “A dilemma for the emergence of spacetime in canonical quantum gravity”, Studies in History and Philosophy of Modern Physics 44 [2013]: 286–293; Reiner Hedrich, “Hat die Raumzeit Quanteneigenschaften? – Emergenztheoretische Ansätze in der Quantengravitation”, in Philosophie der Physik, ed. M. Esfeld [Berlim: Suhrkamp, no prelo], pp. 287-305). Mas como se pode explicar a emergência sincrônica do tempo como realidade superveniente no contexto da cosmogonia? Os autores citados não nos dizem. A melhor explicação que consigo imaginar é dizer que a descrição euclidiana se trata de uma descrição de nível inferior do espaço-tempo clássico anterior ao tempo de Planck. (Pode-se recordar a observação de Hawking de que, quando voltamos ao tempo real em que vivemos, ainda haveria singularidades.) Assim, a mesma realidade está sendo descrita em dois níveis. Isto implica que, se o espaço-tempo clássico tem um começo, o regime da gravidade quântica também o tem. Isto porque são descrições da mesma realidade. Em um, a singularidade é parte da descrição; no outro, ela não é. Por isso, o que é anterior ao tempo de Planck não é a era da gravidade quântica como tal; antes, o que é anterior é o período clássico do qual a gravidade quântica se constitui a descrição mais fundamental. Se isto estiver correto, então, dado o começo do universo descrito de maneira clássica, é impossível que o universo enquanto quantum, descrito gravitacionalmente, seja sem começo. Isto porque são justamente o mesmo universo, em diferentes níveis de descrição.
  26. Anthony Aguirre e John Kehayias, “Quantum Instability of the Emergent Universe”, arXiv:1306.3232v2 [hep-th] 19 nov 2013. Especificamente, estão tratando do modelo de Ellis-Maarten, mas o argumento deles é generalizável.
  27. Richard Schlegel, “Time and Thermodynamics”, in The Voices of Time, ed. J. T. Fraser (Londres: Penguin, 1968), p. 511.
  28. Ludwig Boltzmann, Lectures on Gas Theory, trad. Stephen G. Brush (Berkeley: University of California Press, 1964), §90 (446-448).
  29. Beatrice Tinsley, “From Big Bang to Eternity?”, Natural History Magazine, out 1975, p. 103.
  30. Duane Dicus et al., “The Future of the Universe”, Scientific American (mar 1983): 99.
  31. Tinsley, “Big Bang”, p. 105.
  32. Paul Davies, “The Big Bang—And Before”, The Thomas Aquinas College Lecture Series, Thomas Aquinas College, Santa Paula, Calif., mar 2002.
  33. Lin Dyson, Matthew Kleban e Leonard Susskind, “Disturbing Implications of a Cosmological Constant”, http://arXiv.org/abs/hep-th/0208013v3 (14 nov 2002), p. 4. O ponto de partida deles é o argumento de Henri Poincaré segundo o qual, em uma caixa fechada de partículas em movimento aleatório, toda configuração de partículas, independentemente da sua improbabilidade, tornará a ocorrer em algum momento, dado tempo suficiente; dado tempo infinito, toda configuração tornará a ocorrer infinitas vezes. Ao evitar uma perspectiva global em favor de uma restrição ao nosso fragmento do universo conectado do ponto de vista causal, eles defendem a inevitabilidade de recorrências {coisas que tornam a ocorrer} cosmológicas de Poincaré, permitindo que o processo de cosmogonia comece novamente. Observe que, mesmo que universos-bolha decaiam antes que acontecessem recorrências de Poincaré, há ainda tempo suficiente para a invasão dos cérebros de Boltzmann, discutida abaixo.
  34. Roger Penrose, “Time-Asymmetry and Quantum Gravity”, in Quantum Gravity 2, ed. C. J. Isham, R. Penrose e D. W. Sciama (Oxford: Clarendon Press, 1981), p. 249; cf. Stephen Hawking e Roger Penrose, The Nature of Space and Time, The Isaac Newton Institute Series of Lectures (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1996), pp. 34-35.
  35. Penrose, “Time-Asymmetry”, p. 249.
  36. Roger Penrose, The Road to Reality (New York: Alfred A. Knopf, 2005), pp. 762-765.
  37. Para literatura, ver Don N. Page, “Return of the Boltzmann Brains” (15 nov 2006), https://arxiv.org/abs/hep-th/0611158.
  38. Aron C. Wall, “The Generalized Second Law implies a Quantum Singularity Theorem”, arXiv: 1010.5513v3 [gr-qc] 24 jan 2013, p. 38.
  39. Ibid., p. 4.
  40. Paul Davies, “The Birth of the Cosmos”, in God, Cosmos, Nature and Creativity, ed. Jill Gready (Edimburgo: Scottish Academic Press, 1995), pp. 8-9.
  41. Todas essas citações vêm dos vídeos de Krauss postados no YouTube, incluindo seu “Debate sobre o Nada” no evento Isaac Asimov Memorial Debate, 1:20:25; sua preleção para American Atheists [Ateus Americanos], 26:23; sua entrevista a Richard Fidler; sua discussão com Richard Dawkins no “Projeto Origens” na Universidade Estadual de Arizona, 37 min.; e sua preleção em Estocolmo, 46:37.
  42. David Albert, “On the Origin of Everything”, nota crítica a Um Universo que Veio do Nada, de Lawrence Krauss, New York Times Sunday Book Review, 23 mar 2012.
  43. Alexander Vilenkin para Alan Guth, 20 mar 2017. Sou grato a Daniel Came por compartilhar comigo esta correspondência, em que Vilenkin rejeita com vigor a afirmação de Guth de um universo sem começo com base em modelos de reversão no tempo.
  44. Vilenkin, “The Beginning of the Universe”.
  45. Do nosso debate postado em http://www.reasonablefaith.org/debate-transcript-what-is-the-evidence-for-against-the-existence-of-god; cf. Peter Atkins, Creation Revisited (New York: W. H. Freeman, 1992).
  46. Christopher Isham, “Quantum Cosmology and the Origin of the Universe”, preleção apresentada na conferência “Cosmos and Creation”, Universidade de Cambridge, 14 jul 1994.
  47. Sean Carroll, “Does the Universe Need God?”, in The Blackwell Companion to Science and Christianity, ed. J. B. Stump e Alan G. Padgett (Oxford: Wiley-Blackwell, 2012), p. 196.

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Traduzido de Creation ex nihilo: Theology and Science (Reasonable Faith)


LEIA TAMBÉM a série de artigos Debate sobre a Idade Histórica: Criação Ex Nihilo (publicada aqui no blog).



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