Como é um “mundo muito bom”? (1 de 2)


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Leia a Parte 2

Nota inicial: os trechos entre "{ }" são acréscimos/observações meus.

por Hugh Henry e Daniel J. Dyke

24 de novembro de 2008

As instruções de Deus para “subjugar” e “governar” implicam que o mundo era áspero antes da queda.

Um ponto de discórdia entre aqueles que acreditam na criação é a questão da morte e da decadência na ordem criada original. A questão, simplesmente, é se a morte, a decadência, a doença, as condições adversas etc., existiam ou não como parte do mundo antes da queda de Adão.

Quando Deus proclamou a criação “muito boa” (tob meod), o mundo estava feliz, como o conceito popular de Nirvana – ou funcionou sob condições adversas? [1] Foi “perfeito”, com agricultura autossustentável e leões que literalmente comiam palha? Ou era um mundo cheio de potencial, que precisava de domesticação e gestão? As árvores frutíferas precisavam de poda e os leões “ficavam à espreita num matagal” para “caçar a presa”?

Muitos criacionistas da Terra Velha (CTV) sustentam que a morte e a subsequente decadência ocorreram na ordem original criada, mas não apenas para o homem no seu ambiente fechado chamado “Jardim do Éden”. Os criacionistas da Terra jovem, por outro lado, muitas vezes têm uma interpretação mais restritiva. Por exemplo, o Dr. Jonathan Sarfati escreve: “Uma interpretação direta do Gênesis mostra que a morte de humanos e animais vertebrados (hebraico nephesh chayyah, “criatura viva”) é o resultado da queda de Adão”. [2] Isso é tão claro como afirma o Dr. Sarfati – ou a Bíblia sugere outra interpretação?

A resposta a essa pergunta pode ser encontrada nas palavras kabash e radah (traduzidas como “subjugar” e “governar”, respectivamente, na maioria das traduções para o inglês) {em português, “sujeitar” (A21, ARA, ARC, NAA, TB)/“subjugar” (NVI) e “dominar” (A21, NVI, ARA, ARC, TB)/“ter domínio” (NAA), para citar algumas traduções}, conforme usadas em Gênesis 1:28. Deus instrui Adão a,

“E Deus os abençoou e Deus lhes disse: Frutificai, e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre ... animal que se move sobre a terra.” [ARC] (grifo nosso).

A interpretação popular do mundo pré-queda como um “Nirvana feliz” tornou-se a posição de fato e, para alguns, um teste de ortodoxia. Antes da queda, acredita-se que o homem vivia num paraíso em harmonia com a natureza. Assim, a ordem de Deus de “sujeitar” e “dominar” (ARC) é vista como uma administração indistinta e benigna. Figuras animatrônicas de crianças e dinossauros brincando juntos em exibição no Creation Museum em Kentucky ilustram isso ao extremo. Parece que, de acordo com essa interpretação, a única tarefa do homem era não estragar tudo comendo o fruto proibido.

Contudo, este cenário de paraíso intocado não é consistente com os significados de kabash e radah. Um léxico hebraico define kabash como “subjugar, trazer à escravidão”; [3] e define radah como “ter domínio, governar, dominar”. [4] Essas palavras implicam uma administração agressiva e enérgica e sugerem que a interpretação do “Nirvana feliz” está errada. Em vez disso, a Bíblia ensina que o mundo pré-queda exigia que a humanidade o domesticasse e gerisse. A terra precisava de cultivo, as árvores frutíferas precisavam de poda e os leões provavelmente ficavam à espreita para caçar presas.

Para traçar um bom quadro das condições no mundo pré-queda, é necessário rever os usos de kabash e radah em outras partes do Antigo Testamento. Onze outros usos do kabash referem-se a ações violentas contra forte resistência. Especificamente, kabash é usado em relação a:

  1. Conquista militar contra um inimigo forte (a) Os israelitas conquistando Canaã. [5] (b) O rei David conquistando povos vizinhos. [6]
  2. Deus libertando o seu povo, liberando-os do jugo dos seus captores com a vinda do Messias. [7]
  3. Escravidão (a) Israelitas capturando e escravizando residentes de Judá. [8] (b) Judeus se vendendo como escravos. [9] (c) Escravidão forçada de judeus por seus irmãos judeus. [10]
  4. Hamã acusado de intenção de agredir a rainha Ester. [11]
  5. Deus destrói os pecados daqueles que se arrependem. [12]

Os usos de radah no Antigo Testamento além de Gênesis 1 sempre implicam total controle e/ou conquista – até mesmo destruição total – diante da resistência violenta (ou do potencial para resistência violenta). Radah ocorre cinco vezes na literatura mosaica após Gênesis 1, em relação a:

  1. Gestão de escravos. Levítico 25:43, 46 e 53 parece especialmente revelador. Os versículos 44-46 dão carta branca aos israelitas em relação aos escravos que são “forasteiros que peregrinam entre vós”, mas os versículos 43, 46 e 53 repetem instruções específicas para não “se assenhorar” (radah) dos escravos israelitas “com rigor”. O uso de um qualificador para diminuir a gravidade sugere que radah pode ter um elemento de brutalidade.
  2. Governo dos israelitas por inimigos cruéis se eles rejeitarem as leis e mandamentos de Deus. [13]
  3. Conquista e destruição de adversários malignos pelo Messias e/ou David. [14]
O uso de radah é semelhante em 14 casos, em toda a literatura não-mosaica:
  1. O controle absoluto de Salomão sobre os territórios e “reis” dentro de seu império. [15]
  2. Controle dos capatazes sobre os trabalhadores recrutados nos projetos de construção de Salomão (incluindo o templo). [16] A obra não foi realizada com alegria, mas com grande severidade; se o diálogo em 1 Reis 12 entre o povo e o Rei Roboão após a morte de Salomão for literal, os recrutados foram controlados e dirigidos com “chicotes”.
  3. O governo severo dos israelitas por seus inimigos. [17]
  4. Governo dos ímpios pelos justos após a morte. [18]
  5. Os inimigos de Deus vencidos (“eles”), governados (ou liderados) no desfile da vitória pela tribo de Benjamim, a menor e mais fraca tribo. [19]
  6. O governo absoluto do Messias, conforme profetizado por Davi. [20]
  7. Controle absoluto, por parte de Israel, sobre seus inimigos quando Deus restaurar Seu povo ao derrotar os inimigos deste. [21]
  8. Governo do povo por sacerdotes, permitindo ou bloqueando o acesso a Deus. [22]
  9. Radah com um negativo – implicando nenhum controle. [23] Deus, através de Ezequiel, promete que um Egito restaurado não exercerá qualquer controle sobre os seus vizinhos.
  10. Maus tratos e abusos dos fracos em Israel por parte dos seus irmãos mais fortes. [24]

No contexto da interpretação popular do “Nirvana feliz”, é útil avaliar o “requisito mínimo” do texto. Ou seja, qual é o uso menos restritivo de kabash e radah?

  1. O uso mínimo de kabash parece ser agressão. [25] Outros usos envolvem a escravização e o assassinato de pessoas, sendo que ambos aumentam o nível de brutalidade envolvido.
  2. O uso mínimo mosaico de radah parece ser uma instrução de Deus aos israelitas para não “se assenhorear com rigor” de escravos que são companheiros israelitas. [26] A literatura mosaica diz, em outro lugar, que um escravo israelita presta “o dobro do serviço de um homem contratado” a um companheiro israelita. [27] Assim, o uso mínimo implica submeter-se à vontade de outrem, como um empregador ou um senhor benevolente.
  3. O uso mínimo não-Mosaico de radah é provavelmente o controle dos capatazes sobre os trabalhadores recrutados nos projetos de construção de Salomão (incluindo o templo). [28] Com base em 1 Reis 12, eles eram, no mínimo, tratados como escravos israelitas; entretanto, se os chicotes fossem realmente usados, eles seriam governados com mais severidade.

As palavras têm significado. Quando os vários usos de kabash e radah transmitem unanimemente uma conotação tão forte – sem nenhuma indicação clara de qualquer outro significado no contexto de Gênesis 1 – é estatisticamente significativo. Essa mesma forte conotação deve ser considerada aplicável a Gênesis 1.

Nosso próximo artigo, se discutirá a aplicação dos significados de kabash e radah à questão da condição do mundo antes da queda.

Dr. Hugh Henry, Ph.D.
Dr. Hugh Henry recebeu seu Ph.D. em Física pela Universidade da Virgínia em 1971, aposentou-se após 26 anos na Varian Medical Systems e atualmente atua como professor de física na Northern Kentucky University em Highland Heights, KY.

Daniel J. Dyke, M.Div., M.Th.
Daniel J. Dyke recebeu seu mestrado em Teologia pelo Seminário Teológico de Princeton em 1981 e atualmente atua como professor de Antigo Testamento na Cincinnati Christian University, em Cincinnati, OH.

Notas de Fim

  1. Observe que esta é a forma comparativa hebraica do adjetivo, não o superlativo; isto implica que o mundo estava em melhores condições, mas não em condições perfeitas, nem mesmo nas melhores.
  2. Jonathan Sarfati, Refuting Compromise: A Biblical and Scientific Refutation of “Progressive Creationism” (Billions of Years) As Popularized by Astronomer Hugh Ross (Green Forest, AR: MasterBooks, 2004), 195. Ao ler a citação e o título desse trabalho, o leitor deve notar que o Dr. Sarfati se envolve em um tipo de argumento {falacioso} conhecido como “envenenamento do poço”. O termo “compromisso” (compromise) carrega a ideia de infidelidade e rejeição da autoridade bíblica.
  3. Francis Brown et al., ed., A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (Londres: Oxford University Press, 1972), 461.
  4. Brown et al., ed., A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, 921-2.
  5. Números 32:22, 29; Josué 18:1 (subjugada; sujeita, ARC).
  6. 2 Samuel 8:11; 1 Crônicas 22:18 (sujeita; sujeitara, ARC).
  7. Zacarias 9:15 (tiverem sujeitado, ARC).
  8. 2 Crônicas 28:10 (sujeitar, ARC).
  9. Neemias 5:5 (sujeitamos ... a serem servos, ARC).
  10. Jeremias 34:16 (sujeitastes, ARC).
  11. Ester 7:8 (forçar, ARC).
  12. Miquéias 7:19 (subjugará, ARC).
  13. Levítico 26:17 (assenhorearão, ARC).
  14. Números 24:19 (dominará, ARC); esta é a profecia de Balaão.
  15. 1 Reis 4:24 (dominava, ARC); Salmos 72:8 (dominará, ARC). Visto que o Salmo 72 é uma profecia messiânica, este uso de “dominará” também se refere ao governo do Messias. Contudo, visto que o contexto é uma comparação com o governo de Salomão, parece apropriado agrupar o Salmo 72:8 com 1 Reis 4:24.
  16. 1 Reis 5:15, 9:23; 2 Crônicas 8:10 (davam ordens; presidiam, ARC).
  17. Neemias 9:28 (dominassem, ARC).
  18. Salmos 49:14 (terão domínio, ARC). A severidade é menos clara neste caso, mas o contexto do salmo é que as pessoas boas triunfam sobre os ímpios após a morte – mesmo que os ímpios possam triunfar em vida.
  19. Salmo 68:27 (domina, ARC). Embora o antecedente de “eles” seja ambíguo, é improvável que o antecedente seja “os príncipes de Judá”, uma vez que Benjamim governou Judá apenas durante o reinado de Saul, e o contexto do Salmo é a vitória de Deus sobre Seus inimigos e a colocação dessas pessoas sob o domínio do povo de Deus.
  20. Salmos 110:2 (domina, ARC). Embora o significado preciso da frase que diz que o Messias “domina no meio dos teus inimigos” não seja claro, o contexto do salmo implica controle messiânico absoluto, em particular, Seu julgamento entre as nações (Salmos 110:6, ARC) depois que Ele “ferir reis” (Salmo 110:5, ARC).
  21. Isaías 14:2, 6 (dominarão; dominava, ARC).
  22. Jeremias 5:31 (dominam, ARC). O contexto desta passagem é a infidelidade do povo de Judá, que provocará a conquista da Babilônia. Embora a passagem deixe claro que a maioria infiel “deseja” o fato de os sacerdotes infiéis ignorarem as leis de Deus, o livro de Jeremias também detalha como estes sacerdotes infiéis perseguiram severamente aqueles que seguiram a Deus, como Jeremias, Urias e Baruque.
  23. Ezequiel 29:15 (dominem, ARC).
  24. Ezequiel 34:4 (dominais, ARC).
  25. Ester 7:8 (forçar, ARC).
  26. Levítico 25:43, 46, 53 (assenhorearás; assenhoreareis; assenhoreará, ARC).
  27. Deuteronômio 15:18 (ARC).
  28. 1 Reis 5:159:232 Crônicas 8:10 (davam ordens; presidiam, ARC).

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A Criação, em Gênesis 1 e 2, era realmente 'muito boa'? - Como era a Criação antes da Queda de Adão e Eva? - Deus realmente fez tudo 'muito bom'?


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